Os pilares do nosso blogger são: Palavra de Deus, Tradição Apostólica e Magistério da Igreja.
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A Igreja Católica Apostólica Romana e o uso das Imagens
Introdução
Muitas pessoas têm a maior curiosidade para saber como é
de fato a face da Imagem da Virgem de Aparecida. Faço chegar uma foto bem de
perto da Imagem original da Padroeira do Brasil, aproveitando a oportunidade
para falarmos do uso das imagens na Igreja. Este é um assunto tão polêmico,
onde pessoas que se dizem conhecedoras da Palavra, nos acusam do pecado da
idolatria. Nós cristãos católicos não adoramos imagens! A Igreja católica
Apostólica Romana condena veementemente toda idolatria porque ela é pecado abominável
aos olhos de Deus.
Idolatria
e Igreja Católica
Idolatria, segundo o Dicionário Aurélio é “culto prestado a
ídolos, amor ou paixão exagerada, excessiva”. Para um bom entendedor
saberá que não é o uso de imagens no culto divino, mas prestar a uma criatura,
o culto de adoração que devemos exclusivamente a Deus. É por isso que São Paulo
nos adverte que a avareza é uma idolatria (cf. Col 3,5), uma vez que o avarento
coloca o dinheiro no lugar de Deus, como o valor supremo de sua vida.
Ora, o que há de mais importante no universo é Deus, pois
é Ele quem o criou e sustenta no ser. Todo o cosmos depende de Deus para
existir. Logo, também em nossa hierarquia de valores, Deus deve ocupar o
primeiríssimo lugar, como valor supremo. Todos os demais valores e ideais devem
submeter-se a Ele. Quando colocamos outro bem, valor ou ideal no lugar que é
exclusivo de Deus, destoamos da ordem do cosmos e caímos na idolatria. Afinal
de contas, todo o universo canta a glória de Deus (cf. Sl 18,2). Quem,
portanto, não coloca a Deus como valor supremo de sua vida, não apenas nega a
adoração exclusivamente a Ele devida, como também prejudica a si próprio. Por
isso Deus ordenou no primeiro mandamento de sua Lei: “Eu sou o Senhor teu Deus,
que te tirei da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses
diante de mim” (cf Ex 20,2-3). Do mesmo modo Nosso Senhor Jesus Cristo, quando
repeliu o demônio que o tentava, repetiu o preceito: “Adorarás o Senhor teu
Deus, e só a Ele servirás” (cf Mt 4,10).
Todavia, se devemos adorar somente a Deus, isso não
significa que não devemos honrar e invocar seus santos e anjos. O mesmo Deus
que ordenou que adorássemos só a Ele, também mandou honrar os pais (cf Ex 20,12/
Dt 5, 16/ Mt 15 6), as autoridades públicas (cf. Rom 13), àqueles que pregaram
a Palavra de Deus (cf Hb 13, 7-9) os nossos superiores e as pessoas mais idosas
(cf Lv 19, 32). Prestar honra a essas pessoas, simples criaturas, em nada
prejudica a adoração devida exclusivamente ao Criador.
Se devemos honrar os governantes deste mundo, quanto mais
os anjos, de cujo ministério Deus se serve para governar não só a Igreja, como
também todas as coisas criadas(cf Ap 8, 4). Foi por isso que Abraão prostrou-se
diante dos três anjos que lhe apareceram em forma humana, para anunciar o
nascimento de seu filho Isaac (cf. Gen 18,2).
O
culto aos anjos e santos na Bíblia
Também o culto aos santos, longe de diminuir a glória de
Deus, lhe dá o maior incremento possível. Canta a Virgem Maria no Magníficat
que “o Poderoso fez em mim maravilhas” (cf Lc 1,49). Quando honramos retamente
um santo, proclamamos as maravilhas que a Graça de Deus (Jesus Cristo) operou
na vida dele. Como se diz no Prefácio dos Santos, “na assembléia dos santos vós
sois glorificado e, coroando seus méritos, exaltai vossos próprios dons”. A
santidade que veneramos nos homens santos é dom do único e três vezes Santo.
Honrando os santos, glorificamos a Deus que os santificou.
Deus é um Pai amoroso, a quem muito agrada ver seus
filhos intercedendo uns pelos outros. Ademais, quis associar suas criaturas na
obtenção e distribuição de suas graças. Muitas coisas Deus não as concede, se
não houver a intervenção de um intercessor. Para que os amigos de Jó fossem
perdoados, por exemplo, foi necessária a sua intercessão: “O meu servo Jó orará
por vós; admitirei propício a sua intercessão para que se não vos impute esta
estultícia, porque vós não falastes de mim o que era reto” (Jó 42,8). Também
não é sinal de falta de fé em Deus, recorrermos à intercessão dos santos em
nossas orações. O centurião, por exemplo, recorreu à intercessão dos anciãos
dos judeus (cf. Lc 7,3) para que Jesus curasse seu servo, mas nem por isso o
Senhor deixou de enaltecer sua fé com os maiores elogios: “Em verdade vos digo
que não encontrei tanta fé em Israel” (cf Lc 7,9).
A Igreja Católica confessa que só temos um único Mediador
na pessoa de Jesus Cristo Nosso Senhor (cf 1 Tm 2, 5). Só Ele nos reconciliou
com o Pai pelo oferecimento de seu preciosíssimo sangue, entrando uma só vez no
Santo dos Santos, consumou uma Redenção eterna (cf. Heb 9,11-12) e não cessa de
interceder por nós (cf. Heb 7,25). Todavia, o fato de termos um único Mediador
de Redenção, não significa que não podemos ter junto dele mediadores que clama
a Ele por nós. É isto que vemos em Apocalipse oito (v. 4), onde os anjos
recolhem as orações dos santos, ao pé do Altar do Cordeiro (Jesus Cristo) e entrega
a Deus.
Se recorrer à intercessão dos santos prejudicasse a
glória devida unicamente a Cristo Mediador, o Apóstolo Paulo não pediria, com
tanta insistência, que seus irmãos rezassem por ele: “Rogo-vos, pois, irmãos,
por Nosso Senhor Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, que me ajudeis
com as vossas orações por mim a Deus” (cf Rm 15,30). “Se vós nos ajudardes
também, orando por nós…” (cf 2 Cor 1,11). Se as orações dos que vivem nesta
terra são úteis e eficazes para que sejamos ouvidos por Deus, quem dirá as
orações daqueles que já estão em glória, contemplando a Deus face a face (cf Ap
19, 1-10/ 20, 4-6/ 21, 9-27).
Os
restos mortais dos santos manifestam a glória de Deus
Nos primeiros séculos do cristianismo a Igreja Católica
já venerava os restos mortais dos mártires e conservava-os em lugar de honra,
atribuindo a eles muitos prodígios e milagres.
Todavia, se devemos honrar e venerar os santos e anjos
como fiéis servidores do Senhor, é gravíssimo pecado colocá-los no lugar de
Deus, prestando-lhes culto de adoração. Este abuso é estranho a Doutrina Católica.
Imagens
permitidas da Bíblia
A Sagrada Escritura apresenta, muitas vezes, o mistério
de Deus através de imagens: e a primeira imagem quem a fez foi o próprio Deus,
ao criar o ser humano à sua imagem e semelhança (cf Gn 1,27; 2,7). O mesmo Deus
manda Moisés fazer dois querubins de ouro e colocá-los por cima da Arca da
Aliança (cf Ex 25,18-20). Manda Salomão enfeitar o templo de Jerusalém com
imagens de querubins, palmas, flores, bois e leões (cf 1Reis 6,23-25 e 7,29). O
Novo Testamento também apresenta o mistério de Deus através de imagens: a
imagem de Jesus como cordeiro digno de receber a força e o louvor (cf Ap 5,12).
Quando do batismo de Jesus, o Espírito Santo é apresentado em forma de pomba (cf
Mt 3,16) e, no dia de Pentecostes, com línguas de fogo (cf Atos 2,1-3).
Jesus
ensina através das imagens
Jesus ensinava através de imagens: “Eu sou o bom pastor”
( cf Jo 10,14). Os cristãos à luz do Evangelho vão representar Jesus desenhando
um Bom Pastor com a ovelha nos ombros. Olhando esta imagem, eles não adoravam
um pastor, mas pensavam na ternura de Deus que, em Jesus, busca a ovelha
perdida. Representar algo por imagem ou símbolo era comum na Igreja primitiva,
sobretudo em tempos de perseguição. Sabemos pela história que por muito tempo,
as pinturas dos santos e de cenas bíblicas nas Igrejas foram o único livro que
os cristãos mais simples puderam ler e entender a manifestação de Deus.
Imagens
proibidas na Bíblia: idolatria
A Bíblia, então, não proíbe o uso das imagens? Sim,
proíbe quando sua finalidade é servir à idolatria (cf Ex 20,2-5). Em várias
passagens bíblicas se repete esta proibição de não adorar outros deuses e nem
fazer deuses fundidos (cf Ex 34,14.17/ Sl 116, 4-8/ Dt 7,5).
Vimos no início de nossa reflexão o que é a idolatria,
tendo como base esse conceito entenderemos que "ídolo" designa imagem
feita para ser adorada como deus, como faziam os pagãos com suas divindades.
Para os judeus, as imagens dos deuses são os próprios deuses pagãos. Os povos
vizinhos dos judeus acreditavam em muitos deuses e faziam imagens deles.
Geralmente, estes deuses, criados pelo próprio homem, serviam de apoio ao
sistema injusto e cruel que maltratava o povo, em especial os pobres. Em Israel
não se podia fazer imagem de Deus, não se podia imaginar como Deus era, pois
Ele é invisível e ninguém nunca o tinha visto. Do Deus verdadeiro não se faz
imagens, porque todas as imagens são inadequadas para Javé.
As Imagens no culto litúrgico da Igreja
Muitos cristãos católicos foram martirizados aos milhares
porque se recusaram a adorar imagens de deuses falsos. Eles estudaram a Bíblia
com atenção e jamais tiravam esses textos que proíbem imagens de seu contexto.
Comparando-os com outros textos bíblicos, ficaram convencidos de que Deus
proíbe imagens de deuses falsos, adoração de ídolos que representem falsos
valores, os quais induzem ao pecado. É o que faziam os povos vizinhos de Israel,
como vimos acima. No II Concílio de Nicéia (ano 787), defendeu-se a veneração
das imagens (pintura e escultura) de santos pelos cristãos e o uso de símbolos
nas celebrações litúrgicas porque a Igreja viu que elas são importantes para a
compreensão da mensagem do Evangelho e para a nossa união com o mistério de
Deus. O mesmo fez o Concilio Vaticano II, mantendo o culto às imagens conforme
a tradição (LG 67), contanto que seja em número comedido e na ordem devida (SC
125).
A primeira coisa que devemos fazer é procurar entender a
diferença de culto. Existem três diferenças importantíssimas e uma não se
confunde com as outras: 1ª) Culto
de latria (grego: "latreuo")
quer dizer adorar – É o culto reservado somente a Deus; 2ª) Culto de dulia (grego: "douleuo") quer dizer honrar – está reservado a São José e aos
santos; 3ª Culto de hiperdulia
(grego: “hyper”, acima de; “douleuo”, honra) ou acima do culto de honra,
sem atingir o culto de adoração – este culto está reservado somente a Maria mãe
de Jesus.
Alguns protestantes protestam dizendo que toda a
"inclinação", "genuflexão", etc, é um ato eminentemente de
"adoração", só devido à Deus. Já demonstramos, com o trecho do
Gênesis, que isso não procede. Todavia, para deixar mais claro o problema,
devemos recordar que o culto de "latria" (ou de "dulia") é
um ato interno da alma. A adoração é, eminentemente, um ato interior do homem,
que pode se manifestar de formas variadas, conforme as circunstâncias e as disposições
de alma de cada um.
Os atos exteriores - como genuflexão, inclinação, etc -,
são classificados tendo em vista o "objeto" a que se destinam. Se é
aos santos que se presta a inclinação, é claro que se trata de um culto de
dulia. Se é a Deus, o culto é de latria. Aliás, a inclinação pode ser até um
ato de agressão, como no caso dos soldados de Pilatos que, zombando de Nosso
Senhor, "lhe cuspiram no rosto e, prostrando-se de joelhos, o
adoraram" (cf Mc 15, 19). Sendo assim, a objeção protestante, dessa forma,
cai por terra. Ou eles teriam que afirmar que havia uma "adoração"
por parte dos soldados de Pilatos, o que é absurdo! Eles simulavam uma adoração
(ou veneração ao "Rei dos Judeus), através de atos exteriores, mas seu
desejo era de zombaria.
A
Igreja Católica não desobedece a Bíblia quando reza com as imagens
Mas, vamos esclarecer mais: o mesmo Deus que proibiu confeccionar
as imagens dos ídolos, ordenou que se fizessem “outras” imagens (cf Ex 25, 18).
Tem o mesmo valor que os ídolos, as imagens que o Senhor mandou Moisés
confeccionar? Claro que não tem o mesmo valor ou sentido, pois a finalidade
delas eram para convidar o povo a rezar diante para da Arca da Aliança e
respeita-la! Observem que tanto as imagens dos anjos, como a Arca, são objetos,
frutos da produção humana. Porém com uma diferença, eram objetos santificados
por Deus para manifestar a sua glória (cf Num 21, 9).
O
povo de Deus vivia no meio dos idólatras
Os hebreus viviam no meio de povos idólatras, cujos
deuses eram concebidos como tendo formas visíveis, muitas vezes com figura de
animais. Para ressaltar a transcendência e a espiritualidade do Deus
verdadeiro, este preceito proibia que os israelitas representassem a divindade
com imagens. Com efeito, Deus em si mesmo não está ao alcance da nossa vista: é
um ser puramente espiritual, não tem corpo, não cabe nos limites do espaço, nem
pode ser representado por nenhuma figura. “Não vistes figura alguma no dia em
que o Senhor vos falou sobre o Horeb do meio do fogo” (cf Dt 4,15).
Jesus
revelou a face escondida de Deus e a Igreja Católica passou a usar as imagens
sagradas
Com a encarnação do Filho de Deus foi superada a
proibição de se fazer imagens que representasse Deus, pois ele mesmo se fez
Carne, revelou seu Rosto e habitou entre nós (cf Jo 1,14), Ele se tornou
visível a nós como homem. Invisível em sua divindade, Deus se tornou visível na
humanidade de nossa carne. Como diz o Prefácio do Natal do Senhor, reconhecendo a Jesus como Deus visível a
nossos olhos, aprendemos a amar nele a divindade que não vemos.
A diferença do cristianismo com todas as outras as
religiões é que o nosso Deus se fez homem. O centro da Fé cristã é o mistério
de Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro. Perfeitamente homem, sem deixar de
ser Deus. Mesmo depois da Ressurreição, o Cristo manteve a sua natureza humana
na sua integridade e perfeição, como fez questão de sublinhar aos Apóstolos:
“Olhai para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo; apalpai, e vede, porque
um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que eu tenho” (cf Lc
24,39). Até hoje, no Céu, dentro do peito de Jesus bate incessantemente um
coração de carne, em suas veias corre sangue verdadeiramente humano.
Entendamos todos que Jesus Cristo é “a imagem visível de
Deus invisível” (cf. Col 1,15). Assim sendo, toda vez que honramos uma imagem
sagrada, damos testemunho da nossa Fé no mistério da Encarnação do Filho de
Deus. Portanto, quem renega as imagens, de certo modo atenta contra a fé nesse
mistério. Rejeitar as imagens sagradas é voltar à Antiga Lei, quando Deus ainda
não tinha se feito homem. Quem defende isso, para ser coerente, deve também
praticar a circuncisão e guardar o sábado, como é prescrito na Lei de Moisés.
Para essas pessoas, o Cristo não veio ainda.
Portanto, beijar uma imagem ou acender diante dela uma
vela não são práticas idolátricas, mas atos de piedade. Somente pessoas
ignorantes, que não compreendem os dogmas da Fé em seu verdadeiro sentido,
podem ter a audácia de chamar de idolatria essas práticas.
Quem honra uma imagem, honra a pessoa que nela está
representada. Aquilo que a Bíblia nos ensina com palavras, as imagens nos
anunciam com figuras visíveis. A imagem representa, ou seja, torna presente a
pessoa simbolizada. Todavia, não podemos confundir essa presença, que é
meramente uma presença simbólica, com a presença real de Nosso Senhor Jesus
Cristo no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Na imagem Jesus está presente
como em um símbolo, na Eucaristia como realidade substancial. Por isso, diante
do Santíssimo Sacramento fazemos genuflexão e o adoramos, porque ali Ele está
presente com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade.
O
verdadeiro sentido das imagens que a Igreja Católica venera
O sentido das imagens católicas está na linha da serpente
de bronze que Deus mandou Moisés esculpir (cf Num 21, 8-9), segundo a
explicação dada em Sabedoria 16,7: ”e quem se voltava para ele (o sinal da
serpente), era salvo, não em virtude do que via, mas graças a Ti, ó Salvador de
todos”.
José
Wilson Fabrício da Silva, crl
(Cônego
Regular lateranense)
BIBLIOGRAFIA:
BÍBLIA de Jerusalém, São
Paulo, Paulus, 2012.
BÍBLIA DE ESTUDO, Palavras
Chave Hebraico e Grego, 3Ed., Rio de Janeiro, CPAD, 2012.
INTRODUÇÃO GERAL SOBRE O MISSAL ROMANO, 4ª ed.,
Paulinas, São Paulo, 2011.
CATECISMO
DA IGREJA CATÓLICA, São Paulo, Loyola, 1993.
JOÃO PAULO II, Duodecim
Saeculum. Carta Apostólica sobre a Veneração das Imagens, 1987. Petrópolis:
Vozes, 1988.
PONTIFICAL ROMANO. Ritual da
dedicação de igreja e de altar, 1977. São Paulo: Paulinas, 1984.
SCOMPARIM A. F., A iconografia na Igreja Católica. São
Paulo: Paulus, 2008.
quarta-feira
Santo Agostinho de Hipona segundo o Papa Bento XVI
Vamos falar do maior padre da Igreja
Latina, Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de elevadíssima inteligência
e de incansável entrega pastoral. Este grande santo e doutor da Igreja é
conhecido, ao menos de nome, inclusive por quem ignora o cristianismo ou não
tem familiaridade com ele, por ter deixado uma marca profunda na vida cultural
do Ocidente e de todo o mundo.
Por
sua singular relevância, Santo Agostinho teve uma influência enorme e poderia
afirmar-se, por uma parte, que todos os caminhos da literatura cristã latina
levam a Hipona (hoje Anaba, na costa da Argélia), localidade na qual era bispo
e, por outra, que desta cidade da África romana, na qual Agostinho foi bispo
desde o ano 395 até 430, partem muitos outros caminhos do cristianismo
sucessivo e da própria cultura ocidental.
Poucas
vezes uma civilização encontrou um espírito tão grande, capaz de acolher os valores
e de exaltar sua intrínseca riqueza, inventando idéias e formas das quais se
alimentariam as gerações posteriores, tal como sublinhou também Paulo VI:
«Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui em sua obra e dessa
se derivam correntes de pensamento que penetram toda a tradição doutrinal dos
séculos posteriores» (AAS, 62, 1970, p. 426).
Agostinho
é também o padre da Igreja que deixou o maior número de obras. Seu biógrafo,
Posídio, diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tanto em vida.
Em um próximo encontro falaremos destas obras. Hoje, nossa atenção se
concentrará em sua vida, que pôde reconstruir-se com seus escritos, e em
particular com as «Confissões», sua extraordinária biografia espiritual escrita
para louvor de Deus, sua obra mais famosa.
As
«Confissões» constituem, precisamente por sua atenção à interioridade e à
psicologia, um modelo único na literatura ocidental, e não só ocidental,
inclusive a não-religiosa, ate a modernidade.
Esta
atenção pela vida espiritual, pelo mistério do eu, pelo mistério de Deus que se
esconde no eu, é algo extraordinário, sem precedentes, e permanece para sempre
como um «cume» espiritual.
Mas
voltamos à sua vida. Agostinho nasceu em Tagaste, na província de Numídia, na
África romana, em 13 de novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois
chegou a ser catecúmeno, e de Mônica, fervorosa cristã.
Esta
mulher apaixonada, venerada como santa, exerceu em seu filho uma enorme
influência e o educou na fé cristã. Agostinho havia recebido também o sal, como
sinal da acolhida no catecumenato. E sempre se fascinou pela figura de Jesus
Cristo; e mais, diz que sempre amou Jesus, mas que se afastou cada vez mais da
fé eclesial, da prática eclesial, como acontece também hoje com muitos jovens.
Agostinho
tinha também um irmão, Navigio, e uma irmã, da qual desconhecemos o nome e que,
após ficar viúva, converteu-se em superiora de um mosteiro feminino.
O
rapaz, de agudíssima inteligência, recebeu uma boa educação, ainda que nem
sempre foi estudante exemplar. De qualquer forma, aprendeu bem a Gramática,
primeiro em sua cidade natal e depois em Madaura e, a partir do ano 370,
Retórica, em Cartago, capital da África romana: chegou a dominar perfeitamente
o Latim, mas não alcançou o mesmo nível em grego, nem aprendeu o púnico, língua
que seus antepassados falavam.
Em
Cartago, Agostinho leu pela primeira vez o «Hortensius», obra de Cícero que
depois se perderia e que se marca no início de seu caminho rumo à conversão. O
texto ciceroniano despertou nele o amor pela sabedoria, como escrevia já sendo
bispo nas «Confissões»: «Aquele livro mudou meus sentimentos», até o ponto de
que «de repente todas as minhas vãs esperanças envelheceram ante meus olhos e
comecei a acender-me em um incrível ardor do coração por uma sabedoria imortal»
(III, 4, 7).
Mas,
dado que estava convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou
efetivamente a verdade, e dado que nesse livro apaixonante faltava esse nome,
ao acabar de lê-lo começou a ler a Escritura, a Bíblia. Ficou decepcionado. Não
só porque o estilo da tradução ao Latim da Sagrada Escritura era deficiente,
mas também porque o mesmo conteúdo não lhe parecia satisfatório.
Nas
narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas, ele não encontrava
a altura da filosofia, o esplendor da busca da verdade que lhe é próprio.
Contudo, não queria viver sem Deus e buscava uma religião que respondesse a seu
desejo de verdade e também a seu desejo de aproximar-se de Jesus.
Desta
maneira, caiu na rede dos maniqueístas, que se apresentavam como cristãos e
prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido
em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da
história humana. A moral dualista também atraía Santo Agostinho, pois
comportava uma moral muito elevada para os eleitos: e para quem, como ele,
aderia à mesma era possível uma vida muito mais adequada à situação da época,
especialmente se era jovem.
Tornou-se, portanto, maniqueísta, convencido nesse momento de que havia
encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus
Cristo. E tirou uma vantagem concreta para sua vida: a adesão aos maniqueístas
abria fáceis perspectivas de carreira. Aderir a essa religião, que contava com
muitas personalidades influentes, permitia-lhe continuar sua relação com uma
mulher e continuar com sua carreira.
Desta
mulher teve um filho, Adeodato, a quem amava muito, sumamente inteligente, que
depois estaria presente em sua preparação para o batismo no lago de Como,
participando nesses «Diálogos» que Santo Agostinho nos deixou. Infelizmente, o
rapaz faleceu prematuramente.
Sendo
professor de Gramática, por volta dos vinte anos, em sua cidade natal, logo
regressou a Cartago, onde se converteu em um brilhante e famoso professor de
Retórica. Com o passar do tempo, contudo, Agostinho começou a afastar-se da fé
dos maniqueístas, que o decepcionaram precisamente desde o ponto de vista
intelectual, pois eram incapazes de resolver suas dúvidas, e se transferiu a
Roma, depois a Milão, onde residia na corte imperial e onde havia obtido um
cargo de prestígio, por recomendação do prefeito de Roma, o pagão Símaco, que
era hostil ao bispo de Milão, Santo Ambrósio.
Em
Milão, Agostinho se acostumou a escutar, em um primeiro momento com o objetivo
de enriquecer sua bagagem retórica, as belíssimas pregações do bispo Ambrósio,
que havia sido representante do imperador para a Itália do Norte. O retórico
africano ficou fascinado pela palavra do grande prelado milanês, não só por sua
retórica. O conteúdo foi tocando cada vez mais seu coração.
O
grande problema do Antigo Testamento, a falta de beleza retórica, de nível
filosófico, resolveu-se com as pregações de Santo Ambrósio, graças à
interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o
Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Deste modo, encontrou a chave
para compreender a beleza, a profundidade inclusive filosófica do Antigo
Testamento e compreendeu toda a unidade do mistério de Cristo na história,
assim como a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo,
Verbo eterno, que se fez carne.
Depois,
Agostinho percebeu que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia
neoplatônica do bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades
intelectuais que, quando era mais jovem, em seu primeiro contato com os textos
bíblicos, haviam lhe parecido insuperáveis.
Agostinho
continuou a leitura dos escritos dos filósofos com a da Escritura, e sobretudo
das cartas de São Paulo. A conversão ao cristianismo, em 15 de agosto de 386,
marcou portanto o final de um longo e agitado caminho interior, do qual continuaremos
falando em outra catequese. O africano se mudou para o campo, ao norte de
Milão, ao longo de Como, com sua mãe, Mônica, o filho Adeodato, e um pequeno
grupo de amigos, para preparar-se para o batismo. Deste modo, aos 32 anos,
Agostinho foi batizado por Ambrósio em 24 de abril de 387, durante a vigília
pascoal na catedral de Milão.
Após
o batismo, Agostinho decidiu regressar à África com seus amigos, com a ideia de
levar vida em comum, de caráter monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, enquanto
esperava para embarcar, sua mãe se enfermou e pouco depois morreu, destroçando
o coração do filho.
Após
regressar finalmente à sua pátria, o convertido se estabeleceu em Hipona para
fundar um mosteiro. Nessa cidade da costa africana, apesar de resistir-se à ideia,
foi ordenado presbítero no ano 391 e começou com alguns companheiros a vida
monástica na qual estava pensando há algum tempo, dividindo seu tempo entre a
oração, o estudo e a pregação.
Queria
estar ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois
compreendeu que o chamado de Deus significava ser pastor entre os demais e
assim oferecer o dom da verdade aos outros. Em Hipona, quatro anos depois, no
ano 395, foi ordenado bispo.
Continuando
com o aprofundamento no estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã,
Agostinho se converteu em um bispo exemplar, com um incansável compromisso
pastoral: pregava várias vezes por semana a seus fiéis, ajudava os pobres e os
órfãos, atendia a formação do clero e a organização dos mosteiros femininos e
masculinos.
Em
pouco tempo, o antigo professor de Retórica se converteu em um dos expoentes
mais importantes do cristianismo dessa época: sumamente ativo no governo de sua
diocese, com notáveis implicações também civis, em seus mais de 35 anos de
episcopado, o bispo de Hipona exerceu uma ampla influência na guia da Igreja
Católica da África romana e mais em geral no cristianismo de sua época,
enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras, como o
maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que colocavam em perigo a fé cristã
no único Deus e rico em misericórdia.
Agostinho
se confiou a Deus cada dia, até o final de sua vida: contraiu febre, enquanto a
cidade de Hipona se encontrava assediada há quase três meses por vândalos
invasores. O bispo, conta seu amigo Posídio na «Vita Augustini», pediu que
transcrevessem com letra grande os salmos penitenciais «e pediu que colassem as
folhas na parede, de maneira que desde a cama em sua enfermidade pudesse ver e
ler, e chorava sem interrupção lágrimas quentes» (31, 2). Assim passaram os
últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu em 28 de agosto do ano 430, sem
ter completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros a suas obras, à sua
mensagem e à sua experiência interior.
A Conversão
Após
vermos sua vida, (...) hoje quero (...) recordar sua experiência interior, que
fez dele um dos maiores convertidos da história cristã. A esta experiência
dediquei em particular minha reflexão durante a peregrinação que fiz a Pavia,
no ano passado, para venerar os restos mortais deste Padre da Igreja. Deste
modo quis expressar a homenagem de toda a Igreja Católica, e ao mesmo tempo
tornar visível minha pessoal devoção e reconhecimento por uma figura à qual me
sinto sumamente unido pela importância que teve em minha vida de teólogo, de
sacerdote e de pastor.
Ainda
hoje é possível recorrer às vivências de Santo Agostinho, graças sobretudo às
«Confissões», escritas para o louvor de Deus, que constituem a origem de uma
das formas literárias mais específicas do Ocidente, a autobiografia, ou seja, a
expressão do conhecimento de si mesmo. Quem quer que se aproxime deste
extraordinário e fascinante livro, ainda hoje sumamente lido, percebe
facilmente que a conversão de Agostinho não foi repentina nem aconteceu plenamente
desde o início, mas que pode ser definida mais como um autêntico caminho, que
continua sendo um modelo para cada um de nós.
Este
itinerário culminou certamente com a conversão e depois com o batismo, mas não
se concluiu com aquela vigília pascal do ano 387, quando em Milão o professor
de retórica africano foi batizado pelo bispo Ambrósio. O caminho de conversão
de Agostinho continuou humildemente até o final de sua vida, até o ponto de que
se pode verdadeiramente dizer que suas diferentes etapas – podemos distinguir
facilmente três – são uma única e grande conversão.
A primeira conversão
Santo
Agostinho foi um buscador apaixonado da verdade: desde o início e depois
durante toda a sua vida. A primeira etapa em seu caminho de conversão se
realizou precisamente na aproximação progressiva ao cristianismo. Na realidade,
ele havia recebido da mãe Mônica, com a qual sempre esteve muito unido, uma
educação cristã e, apesar de que havia vivido nos anos de juventude uma vida
desordenada, sempre sentiu uma profunda atração por Cristo, tendo bebido o amor
pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo sublinha (cf.
«Confissões», III, 4, 8).
Mas
a filosofia, sobretudo a de orientação platônica, também havia contribuído para
aproximá-lo de Cristo, manifestando-lhe a existência do Logos, a razão
criadora. Os livros dos filósofos lhe indicavam que existe a razão, da qual
procede todo o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia
tão afastado. Só a leitura das cartas de São Paulo, na fé da Igreja Católica,
revelou-lhe plenamente a verdade. Esta experiência foi sintetizada por
Agostinho em uma das páginas mais famosas das «Confissões»: conta que, no
tormento de suas reflexões, retirado em um jardim, escutou de repente uma voz
infantil que repetia uma canção, nunca antes escutada: «tolle,, lege, tolle,
lege», «toma, lê, toma, lê» (VIII, 12, 29). Então se lembrou da conversão de
Antônio, pai do monaquismo, e com atenção voltou a tomar um livro de São Paulo
que pouco antes tinha entre as mãos: abriu-o e o olhar se fixou na passagem da
carta aos Romanos na qual o apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a
revestir-se de Cristo (13, 13-14).
Ele
havia compreendido que essa palavra, naquele momento, dirigia-se pessoalmente a
ele, procedia de Deus através do apóstolo e lhe indicava o que ele tinha de
fazer nesse momento. Deste modo sentiu como desapareciam as trevas da dúvida e
era libertado para entregar-se totalmente a Cristo: «Havias convertido a ti meu
ser», comenta («Confissões», VIII, 12, 30). Esta foi a primeira e decisiva
conversão.
O
professor de retórica africano chegou a esta etapa fundamental em seu longo
caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a
buscar a Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo o fez compreender que Deus
não estava tão afastado como parecia. Ele se havia feito próximo de nós,
convertendo-se em um de nós. Neste sentido, a fé em Cristo levou a cumprimento
a longa busca de Santo Agostinho no caminho da verdade. Só um Deus que se fez
«tocável», um de nós, era, em última instância, um Deus ao qual se podia rezar,
pelo qual se podia viver e com o qual se podia viver.
A segunda conversão
É
um caminho que deve ser percorrido com valentia e ao mesmo tempo com humildade,
abertos a uma purificação permanente, algo que cada um de nós sempre precisa.
Mas o caminho de Agostinho não havia concluído com aquela vigília pascal do ano
387, como dissemos. Ao regressar à África, fundou um pequeno mosteiro e se
retirou nele, junto a uns poucos amigos, para dedicar-se à vida contemplativa e
de estudo. Este era o sonho de sua vida. Agora estava chamado a viver
totalmente para a verdade, com a verdade, na amizade de Cristo, que é a
verdade. Um lindo sonho que durou três anos, até que, apesar dele, foi
consagrado sacerdote em Hipona e destinado a servir aos fiéis. Certamente
continuou vivendo com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isso era
muito difícil para ele, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os
demais, e não simplesmente para sua contemplação privada, podia realmente viver
com Cristo e por Cristo.
Deste
modo, renunciando a uma vida consagrada só à meditação, Agostinho aprendeu, às
vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto de sua inteligência para
benefício dos demais. Aprendeu a comunicar sua fé às pessoas simples e a viver
assim para ela naquela cidade que se converteu na sua, desempenhando sem cessar
uma generosa atividade, que descreve com estas palavras em um de seus
belíssimos sermões: «Pregar continuamente, discutir, repreender, edificar,
estar à disposição de todos, é um ingente cargo e um grande peso, um enorme
cansaço» («Sermões» 339, 4). Mas ele carregou este peso, compreendendo que
precisamente deste modo podia estar mais próximo de Cristo. Sua segunda
conversão consistiu em compreender que se chega aos demais com simplicidade e
humildade.
A terceira conversão
Mas
há uma última etapa no caminho de Agostinho, uma terceira conversão: é a que o
levou cada dia de sua vida a pedir perdão a Deus. Ao início, havia pensado que
uma vez batizado, na vida de comunhão com Cristo, nos sacramentos na celebração
da Eucaristia, chegaria à vida proposta pelo Sermão da Montanha: a perfeição
doada no batismo e reconfirmada pela Eucaristia.
Na
última parte de sua vida, ele compreendeu que o que havia dito em suas
primeiras pregações sobre o Sermão da Montanha – ou seja, que nós, como
cristãos, vivemos agora este ideal permanentemente – estava errado. Só o
próprio Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da Montanha. Nós
temos sempre necessidade de ser levados por Cristo, que nos lava os pés, e de
ser renovados por Ele. Temos necessidade de conversão permanente. Até o final
precisamos desta humildade que reconhece que somos pecadores em caminho, até
que o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida eterna.
Agostinho morreu com esta última atitude de humildade, vivida dia-a-dia.
Esta
atitude de humildade profunda ante o único Senhor Jesus o introduziu na
experiência de uma humildade também intelectual. Agostinho, que é uma das
maiores figuras na história do pensamento, quis, nos últimos anos de sua vida,
submeter a um lúcido exame crítico suas numerosas obras. Surgiram assim as
«Retractationes» («revisões»), que deste modo introduzem seu pensamento
teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa daquela à qual chama
simplesmente com o nome de Catholica, ou seja, a Igreja. «Compreendi – escreve
precisamente neste originalíssimo livro (I, 19 1-3) – que só um é verdadeiramente
perfeito e que as palavras do Sermão da Montanha só são realizadas totalmente
por um só: no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, pelo contrário, todos nós,
inclusive os apóstolos, temos de rezar cada dia: ‘perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’».
Convertido
a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho o seguiu durante toda a vida e se
converteu em um modelo para todo ser humano, para todos nós na busca de Deus.
Por este motivo, eu quis concluir minha peregrinação a Pavia voltando a
entregar espiritualmente à Igreja e ao mundo, ante o túmulo deste grande
enamorado de Deus, minha primeira encíclica, Deus caritas est. Esta, de fato,
tem uma grande dívida, sobretudo em sua primeira parte, com o pensamento de
Santo Agostinho.
Também
hoje, como em sua época, a humanidade tem necessidade de conhecer e sobretudo
de viver esta realidade fundamental: Deus é amor, e o encontro com ele é a
única resposta às inquietudes do coração humano. Um coração no qual vive a
esperança – talvez ainda escura e inconsciente em muitos de nossos
contemporâneos –, para nós, os cristãos, abre já hoje ao futuro, até o ponto de
que São Paulo escreveu que «na esperança fomos salvos» (Romanos, 8, 24). À
esperança quis dedicar minha segunda encíclica, Spe Salvi, que também contraiu
uma grande dívida com Agostinho e seu encontro com Deus.
Um
escrito sumamente lindo de Agostinho define a oração como expressão do desejo e
afirma que Deus responde abrindo a ele o nosso coração. Por nossa parte, temos de
purificar nossos desejos e nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf.
Santo Agostinho, «In Ioannis», 4, 6). Só esta nos salva, abrindo-nos também aos
demais. Rezemos, portanto, para que em nossa vida nos seja concedido cada dia
seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele, em todo momento
de nossa vida, o Senhor Jesus, o único que nos salva, que nos purifica e nos dá
a verdadeira alegria, a verdadeira vida.
As Obras
(...)
É o padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e destas quero falar
brevemente. Alguns dos escritos de Agostinho são de importância capital, e não
só para a história do cristianismo, mas também para a formação de toda a
cultura ocidental: o exemplo mais claro está na obra «Confissões», sem dúvida um
dos livros da antiguidade cristã mais lidos ainda hoje. Como vários padres da
Igreja dos primeiros séculos, ainda que em uma medida incomparavelmente mais
ampla, também o bispo de Hipona exerceu uma influência persistente, como se
pode ver pela superabundante tradição manuscrita de suas obras, que são
extraordinariamente numerosas.
Ele
mesmo as revisou anos antes de morrer nas «Retratações» e pouco depois de sua
morte foram cuidadosamente registradas no «Indiculus» (Índice), acrescentado
pelo fiel amigo Posídio à biografia de Santo Agostinho, «Vita Augustini». A
lista das obras de Agostinho foi realizada com o objetivo explícito de
salvaguardar sua memória, enquanto a invasão dos vândalos se estendia por toda
a África romana, e contabiliza 1.300 escritos numerados por seu autor, junto
com outros «que não podem ser numerados porque não colocou nenhum número».
Bispo de uma cidade próxima, Posídio ditava estas palavras precisamente em
Hipona, onde se havia refugiado e onde havia assistido à morte de seu amigo, e
quase seguramente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho.
Hoje sobreviveram mais de 300 cartas do bispo de Hipona, e quase 600 homilias,
mas estas eram originalmente muitas mais, talvez inclusive entre 3.000 e 4.000,
fruto de quatro décadas de pregação do antigo orador, que havia decidido seguir
Jesus e deixar de falar aos grandes da corte imperial para dirigir-se à
população simples de Hipona.
Em
anos recentes, a descoberta de um grupo de cartas e de algumas homilias
enriqueceram o conhecimento deste grande padre da Igreja. «Muitos livros –
escreve Posídio – foram redigidos por ele e publicados, muitas pregações foram
pronunciadas na igreja, transcritas e corrigidas, ora para refutar hereges, ora
para interpretar as Sagradas Escrituras para edificação dos santos filhos da
Igreja. Estas obras – sublinha o bispo amigo – são tão numerosas que
dificilmente um estudioso tem a possibilidade de lê-las e aprender a
conhecê-las.» («Vita Augustini», 18, 9)
Entre
a produção literária de Agostinho, portanto, mais de mil publicações divididas
em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos,
exegéticos e contra os hereges, assim como as cartas e homilias, destacam
algumas obras excepcionais de grande importância teológica e filosófica. Antes
de tudo, devem-se recordar as «Confissões», antes mencionadas, escritas em
treze livros entre os anos 397 e 400 para louvor de Deus. São uma espécie de
autobiografia em forma de diálogo com Deus. Este gênero literário reflete a
vida de Santo Agostinho, que não estava fechada em si mesma, perdida em mil
coisas, mas vivida essencialmente como um diálogo com Deus e, deste modo, uma
vida com os demais.
Por
si só, o título «Confissões» indica o caráter específico desta biografia. Esta
palavra «confissões», no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos,
tem dois significados, que se entrecruzam. «Confissões» indica, em primeiro
lugar, a confissão das próprias fraquezas, da miséria dos pecados; mas ao mesmo
tempo, «confissões» significa louvor a Deus, reconhecimento de Deus. Ver a
própria miséria à luz de Deus se converte em louvor de Deus e em ação de
graças, pois Deus nos ama e nos aceita, transforma-nos e nos eleva para si
mesmo.
Ele
mesmo escreveu sobre estas «Confissões», que tiveram grande êxito já na vida de
Santo Agostinho: «Exerceram sobre mim um grande impacto enquanto as escrevia e
o continuam exercendo quando volto a lê-las. Há muitos irmãos que gostam destas
obras («Retratações», II, 6): e tenho de reconhecer que eu também sou um destes
‘irmãos’». E graças às «Confissões», podemos acompanhar, passo a passo, o
caminho interior desse homem extraordinário e apaixonado por Deus.
Menos
difundidas, ainda que igualmente originais e muito importantes são também as
«Retratações» [Revisões], redigidas em dois livros por volta do ano 427, nas
quais Santo Agostinho, já idoso, faz uma «revisão» («retractatio») de toda sua
obra escrita, deixando assim um documento literário singular e sumamente
precioso, mas ao mesmo tempo um ensinamento de sinceridade e de humildade
intelectual.
«De
civitate Dei» [A Cidade de Deus], obra imponente e decisiva para o
desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da
história, foi escrita entre os anos 413 e 426, em 22 livros. A ocasião era o
saque de Roma por parte dos godos no ano 410. Muitos pagãos, ainda em vida,
assim como muitos cristãos, haviam dito: Roma caiu, agora o Deus cristão e os
apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades
pagãs, Roma era a «caput mundi», a grande capital, e ninguém podia imaginar que
cairia nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já
não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos não protegia, não podia ser o
Deus a quem se encomendar. A esta objeção, que também tocava profundamente o
coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta grandiosa obra, «De
civitate Dei», declarando o que deveriam esperar de Deus e o que não podiam
esperar d’Ele, qual é a relação entre a esfera política e a esfera da fé, da
Igreja. Ainda hoje este livro é uma fonte para definir bem a autêntica
laicidade e a competência da Igreja, a grande esperança que nos dá a fé.
Este
grande livro é uma apresentação da história da humanidade governada pela
Providência divina, mas atualmente dividida em dois amores. E este é o desígnio
fundamental, sua interpretação da história, a luta entre dois amores: o amor
próprio, «até chegar ao menosprezo de Deus» e o amor a Deus, «até chegar ao
desprezo de si mesmo», («De civitate Dei», XIV, 28), à plena liberdade e si
mesmo através dos demais à luz de Deus. Este é talvez o maior livro de Santo
Agostinho, de uma importância permanente.
Igualmente,
é importante o «De Trinitate» [Sobre a Trindade], obra em quinze livros sobre o
núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois
momentos: entre os anos 399 e 412 os primeiros doze livros, publicados sem que
Agostinho soubesse, ele que os completou por volta do ano 420 e revisou a obra
completa. Nele reflete sobre o rosto de Deus e trata de compreender este
mistério de Deus que é único, o único criador do mundo, de todos nós, e que,
contudo, este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Ele procura
compreender o mistério insondável: precisamente seu ser trinitário, em três
Pessoas, é a unidade mais real e profunda do único Deus.
O
«De doctrina Christiana» [Sobre a doutrina cristã] é uma autêntica introdução
cultural à interpretação da Bíblia e, em definitivo, ao próprio cristianismo,
que teve uma importância decisiva na formação da cultura ocidental.
Apesar
de toda sua humildade, Agostinho foi certamente consciente de sua própria
importância intelectual. Mas para ele era mais importante levar a mensagem
cristã aos simples que redigir grandes obras de elevado nível teológico. Sua
intenção mais profunda, que o guiou durante toda sua vida, pode-se ver em uma
carta escrita ao colega Evódio, na qual lhe comunica a decisão de deixar de
ditar por um tempo os livros do «De Trinitate», «pois são muito cansativos e
creio que podem ser entendidos por poucos; são mais necessários textos que
esperamos que sejam úteis para muitos» («Epistulae», 169, 1, 1). Portanto, para
ele era mais útil comunicar a fé de maneira compreensível para todos que
escrever grandes obras teológicas.
A
responsabilidade agudamente experimentada pela divulgação da mensagem cristã se
encontra na origem de escritos como o «De catechizandis rudibus», uma teoria e
também uma aplicação da catequese, ou o «Psalmus contra partem Donati». Os
donatistas eram o grande problema da África e de Santo Agostinho, um cisma que
queria ser africano. Diziam: a autêntica cristandade é a africana. Opunham-se à
unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande bispo lutou durante toda sua
vida, procurando convencer os donatistas de que só na unidade inclusive a
africanidade pode ser verdadeira. E para que o entendessem os simples, que não
podiam compreender o grande latim do orador, disse: tenho de escrever inclusive
com erros gramaticais, em um latim muito simplificado. E o fez, sobretudo neste
«Psalmus», uma espécie de simples poesia contra os donatistas para ajudar todos
a compreender que só na unidade da Igreja se realiza realmente nossa relação
com Deus e cresce a paz no mundo.
Nesta
produção destinada a um grande público, tem particular importância o grande
número de suas homilias, com frequência improvisadas, transcritas por
taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre
estas, destacam as belíssimas «Enarrationes in Psalmus», muito lidas na Idade Média.
A publicação de milhares de homilias de Agostinho, com frequência sem controle
do autor, explica tanto sua ampla difusão como sua vitalidade. Imediatamente,
as pregações do bispo de Hipona se convertiam, pela fama do autor, em textos
sumamente requeridos e eram utilizados também pelos demais bispos e sacerdotes
como modelos, adaptados sempre a novos contextos.
Na
tradição iconográfica, um afresco de Latrão que se remonta ao século IV
representa Santo Agostinho com um livro na mão, não só para expressar sua
produção literária, que tanta influência teve no pensamento dos cristãos, mas
também para expressar seu amor pelos livros, pela literatura e pelo
conhecimento da grande cultura precedente. Ao morrer, não deixou nada, conta
Posídio, mas «recomendava sempre que se conservasse para as futuras gerações a
biblioteca da igreja com todos seus códices», sobretudo os de suas obras.
Nestas, sublinha Posídio, Agostinho está «sempre vivo» e é de utilidade para
quem lê seus escritos, ainda que, como ele diz, «creio que poderiam tirar mais
proveito de seu contato os que puderam vê-lo e escutá-lo quando falava
pessoalmente na igreja e sobretudo os que foram testemunhas de sua vida
cotidiana entre as pessoas» («Vita Augustini», 31). Sim, também para nós seria
maravilhoso poder senti-lo vivo. Mas ele está realmente vivo em seus escritos;
está presente em nós e deste modo vemos também a permanente vitalidade da fé
pela qual ele entregou toda a sua vida.
A Morte
(...)
Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear seu sucessor. Por este motivo, em
26 de setembro do ano 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para
apresentar aos fiéis quem havia designado para esta tarefa. Disse: «Nesta vida,
todos somos mortais, mas o último dia desta vida é sempre incerto para cada
indivíduo. De qualquer forma, na infância se espera chegar à adolescência; na
adolescência, à juventude; na juventude, à idade adulta; na idade adulta, à
idade madura; na idade madura, à velhice. Não se está seguro de que chegará,
mas se espera. A velhice, pelo contrário, não tem ante si outro período no qual
poder esperar; sua própria duração é incerta... Eu, por vontade de Deus,
cheguei a esta cidade no vigor de minha vida; mas agora minha juventude passou
e já sou velho» (Carta 213, 1).
Nesse
momento, Agostinho pronunciou o nome de seu sucessor designado, o sacerdote
Heráclio. A assembléia estourou em um aplauso de aprovação, repetindo 23 vezes:
«Graças sejam dadas a Deus!». Com outras aclamações, os fiéis aprovaram também
o que depois disse Agostinho sobre os propósitos para seu futuro: queria
dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas
Escrituras (cf. Carta 213, 6).
De
fato, seguiram quatro anos de extraordinária atividade intelectual: concluiu
obras importantes, empreendeu outras não menos significativas, manteve debates
públicos com os hereges – sempre buscava o diálogo –, promoveu a paz nas
províncias africanas insidiadas pelas tribos bárbaras do sul.
Neste
sentido, escreveu ao conde Dario, que foi à África para superar as diferenças
entre o conde Bonifácio e a corte imperial, das que se aproveitavam as tribos
dos vândalos para as suas invasões: «Título de grande glória é precisamente o
de adiar a guerra com a palavra, em vez de matar os homens com a espada, e
buscar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Certamente, inclusive
aqueles que combatem, se são bons, buscam sem dúvida a paz, mas à custa de
derramar sangue. Tu, pelo contrário, foste enviado precisamente para impedir
que se derrame o sangue» (Carta 229, 2).
Infelizmente
foi defraudada a esperança de uma pacificação dos territórios africanos: em
maio do ano 429, os vândalos, enviados à África como vingança pelo próprio
Bonifácio, passaram o Estreito de Gibraltar e penetraram na Mauritânia. A
invasão se estendeu rapidamente por outras ricas províncias africanas. Em maio
e em junho do ano 430, «os destruidores do império romano», como Possídio
qualifica esses bárbaros (Vida, 30, 1), rodeavam Hipona, assediando-a.
Na
cidade, também se havia refugiado Bonifácio, que, reconciliando-se tarde demais
com a corte, tratava em vão de bloquear a passagem dos invasores. O biógrafo
Possídio descreve a dor de Agostinho: «Mais que de costume, suas lágrimas eram
seu pão dia e noite e, levando já ao final de sua vida, ele se arrastava mais
que os outros, na amargura e no luto, sua velhice» (Vida, 28, 6). E explica:
«Esse homem de Deus via as matanças e as destruições das cidades; as casas
destruídas nos campos e os habitantes assassinados pelos inimigos ou expulsos;
as igrejas sem sacerdotes ou ministros, as virgens consagradas e os religiosos
dispersos por toda parte; entre eles, alguns haviam desfalecido ante as
torturas, outros haviam sido assassinados com a espada, outros eram
prisioneiros, perdendo a integridade da alma e do corpo e inclusive a fé,
obrigados pelos inimigos a uma escravidão dolorosa e longa» (ibidem, 28,8).
Ainda
que era ancião e estava cansado, Agostinho permaneceu em primeira linha,
consolando a si mesmo e aos outros com a oração e com a meditação dos
misteriosos desígnios da Providência. Falava da «velhice do mundo» – e era
verdadeiramente velho este mundo romano –, falava desta velhice como já o havia
feito anos antes para consolar os refugiados procedentes da Itália, quando no
ano 410 os godos de Alarico invadiram a cidade de Roma.
Na
velhice, dizia, abundam os ataques: tosse, catarro, remelas, ansiedade,
esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é sempre jovem. E lançava este
convite: «não se deve negar-se a rejuvenescer com Cristo, que te diz: ‘Não
temas, tua juventude se renovará como a da águia’» (cf.Sermão 81, 8). Por isso,
o cristão não deve abater-se nas situações difíceis, mas procurar ajudar o
necessitado.
É
o que o grande doutor sugere respondendo ao bispo de Tiabe, Honorato, que lhe
havia pedido se, sob a pressão das invasões bárbaras, um bispo ou um sacerdote
ou qualquer homem de Igreja podia fugir para salvar a vida. «Quando o perigo é
comum a todos, ou seja, para bispos, clérigos e leigos, quem tem necessidade
dos outros não deve ser abandonado por aqueles de quem tem necessidade. Neste
caso, todos devem refugiar-se em lugares seguros; mas se alguns têm necessidade
de ficar, que não sejam abandonados por quem tem o dever de assisti-los com o
ministério sagrado, de maneira que, ou se salvam juntos ou juntos suportam as
calamidades que o Pai de família quer que sofram» (Carta 228, 2). E concluía:
«Esta é a prova suprema da caridade» (ibidem, 3). Como não reconhecer nestas
palavras a heróica mensagem que tantos sacerdotes, através dos séculos,
acolheram e tornaram sua?
«No
terceiro mês daquele assédio – narra – ficou com febre: era sua última doença»
(Vida, 29, 3). O santo ancião aproveitou aquele momento, finalmente livre, para
dedicar-se com mais intensidade à oração. Costumava dizer que ninguém, bispo,
religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer sua conduta, pode
enfrentar a morte sem uma adequada penitência. Por este motivo, repetia
continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes havia
recitado com o povo (cf. ibidem, 31, 2).
Quanto
mais se agravava sua situação, mais necessidade o bispo sentia de solidão e de
oração: «Para não ser perturbado por ninguém em seu recolhimento,
aproximadamente dez dias antes de abandonar o corpo, ele nos pediu que não
deixássemos ninguém entrar em seu quarto, com exceção dos momentos nos quais os
médicos vinham para vê-lo ou quando lhe levavam a comida. Sua vontade foi
cumprida fielmente e durante todo esse tempo ele aguardava em oração» (ibidem,
31, 3). Faleceu em 28 de agosto do ano 430: seu grande coração finalmente
descansou em Deus.
«Por
ocasião da inumação de seu corpo – informa Possídio –, ofereceu-se a Deus o
sacrifício, ao qual assistimos, e depois ele foi sepultado» (Vida,31, 5). Seu
corpo, em data incerta, foi trasladado à Cardenha e, no ano 725, a Pavia, à
basílica de São Pedro no Céu de Ouro, onde descansa hoje. Seu primeiro biógrafo
dá este juízo conclusivo: «Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como
mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência e à
obediência a seus superiores, junto com as bibliotecas que continham os livros
e discursos dele e de outros santos, pelos que se conhece qual foi, por graça
de Deus, seu mérito e sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o
encontram vivo» (Possídio, Vida, 31, 8).
É
um juízo ao qual podemos associar-nos: em seus escritos também nós o
«encontramos vivo». Quando leio os escritos de Santo Agostinho, não tenho a
impressão de que seja um homem morto há mais ou menos 1.600 anos, mas o sinto
como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que nos fala com
sua fé fresca e atual.
Em
Santo Agostinho que nos fala – fala a mim em seus escritos –, vemos a
atualidade permanente de sua fé, da fé que vem de Cristo, do Verbo Eterno
encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de
ontem, ainda que tenha sido pregada ontem; é sempre atual, porque realmente
Cristo é ontem, hoje e sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Deste modo,
Santo Agostinho nos anima a confiar neste Cristo sempre vivo e a encontrar
assim o caminho da vida.
Fé e Razão
(...)
Meu querido predecessor João Paulo II lhe dedicou, em 1986, ou seja, no décimo
sexto centenário de sua conversão, um longo e denso documento, a carta
apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto como
«uma ação de graças a Deus pelo dom que fez à Igreja, e mediante ela à
humanidade inteira, graças àquela admirável conversão». (Augustinum
Hipponensem, 1). Quero enfrentar o tema da conversão em uma próxima audiência.
É um tema fundamental não só para sua vida pessoal, mas também para a nossa. No
Evangelho do domingo passado, o próprio Senhor resumiu sua pregação com a
palavra: «Convertei-vos». Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderemos
meditar sobre o que é esta conversão: é algo definitivo, decisivo, mas a
decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda nossa vida.
A
catequese de hoje está dedicada, pelo contrário, ao tema fé e razão, que é um
tema determinante, ou melhor, o tema determinante da biografia de Santo
Agostinho. Desde criança, havia aprendido de sua mãe, Mônica, a fé católica.
Mas sendo adolescente, havia abandonado esta fé porque já não conseguia ver sua
racionalidade e não queria uma religião que não fosse expressão da razão, ou
seja, da verdade. Sua sede de verdade era radical e o levou a afastar-se da fé
católica. Mas sua radicalidade era tal que não podia contentar-se com
filosofias que não chegassem à própria verdade, que não chegassem até Deus. E a
um Deus que não fosse só uma hipótese última cosmológica, mas que fosse o
verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra em nossa própria vida. Deste
modo, todo o itinerário intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui
um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para
homens crentes, mas para todo homem que busca a verdade, tema central para o
equilíbrio e o destino de todo o ser humano.
Estas
duas dimensões, fé e razão, não devem separar-se nem contrapor-se, mas devem
estar sempre unidas. Como escreveu Agostinho após sua conversão, fé e razão são
«as forças que nos levam a conhecer» (Contra Acadêmicos, III 20, 43). Neste
sentido, continuam sendo famosas suas duas fórmulas (Sermões, 43, 9) com as
quais expressa esta síntese coerente entre fé e razão: crede ut intelligas
(«crê para compreender») – crer abre o caminho para cruzar a porta da verdade
–, mas também e de maneira inseparável, intellige ut credas («compreende para
crer»), perscrutar a verdade para poder encontrar a Deus e crer.
As
duas afirmações de Agostinho manifestam com eficácia e profundidade a síntese
deste problema, em que a Igreja Católica vê seu caminho manifestado.
Historicamente, esta síntese foi-se formando já antes da vinda de Cristo, no
encontro entre a fé judaica e o pensamento grego no judaísmo helênico.
Sucessivamente, na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos
pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo que Deus
não está longe: não está longe de nossa razão, de nossa vida; está perto de
todo ser humano, perto de nosso coração e de nossa razão, se realmente nos
colocamos a caminho.
Precisamente
esta proximidade de Deus do homem foi experimentada com extraordinária
intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo
tempo misteriosa, mas pode reconhecer-se e descobrir-se na própria intimidade:
não há que sair para fora – afirma o convertido –, «volte sobre ti mesmo. A
verdade habita no homem interior. E se encontras que sua natureza é mutável,
transcende-te a ti mesmo. Mas recorda ao fazê-lo assim que transcendes uma alma
que raciocina. Assim, pois, dirige-te ali onde se acende a própria luz da
razão» (De vera religione, 39, 72). Ele mesmo sublinha em uma afirmação
famosíssima do início das Confissões, autobiografia espiritual escrita em
louvor de Deus: «Nos fizeste, Senhor, para ti, e nosso coração está inquieto,
até que descanse em ti» (I, 1,1).
A
distância de Deus equivale, portanto, à distância de si mesmos. «Porque tu –
reconhece Agostinho (Confissões III, 6, 11) – estavas dentro de mim, mais
interior que o mais íntimo meu e mais elevado que o mais supremo meu», interior
intimo meo et superior summo meo; até o ponto de que, em outra passagem,
recordando o tempo precedente a sua conversão, acrescenta: «Tu estavas,
certamente, diante de mim, mas eu me havia afastado de mim mesmo e não me
encontrava» (Confissões V, 2, 2). Precisamente porque Agostinho viveu em
primeira pessoa este itinerário intelectual e espiritual, soube apresentá-lo em
suas obras com tanta proximidade, profundidade e sabedoria, reconhecendo em outras
duas famosas passagens das Confissões(IV, 4, 9 e 14, 22) que o homem é «um
grande enigma» (magna quaestio) e «um grande abismo» (grande profundum), enigma
e abismo que só Cristo ilumina e preenche. Isto é importante: quem está longe
de Deus também está longe de si mesmo, alienado de si mesmo, e só pode
encontrar a si se se encontra com Deus. Deste modo, consegue chegar a seu
verdadeiro eu, sua verdadeira identidade.
O
ser humano, sublinha depois Agostinho no De civitate Dei (XIII, 27), é sociável
por natureza mas anti-sociável por vício, e é salvo por Cristo, único mediador
entre Deus e a humanidade, e «caminho universal da liberdade e da salvação»,
como repetiu meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): foi
deste caminho, que nunca faltou ao gênero humano, segue afirmando Agostinho
nessa mesma obra, «ninguém foi libertado nunca, ninguém é libertado, ninguém
será libertado» (De civitate Dei, X, 32, 2). Como único mediador da salvação,
Cristo é cabeça da Igreja e está unido misticamente a ela de modo que Agostinho
afirma: «Nos convertemos em Cristo. De fato, se ele é a cabeça, nós somos seus
membros, o homem total é ele e nós» (In Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).
Povo
de Deus e casa de Deus, a Igreja, segundo a visão de Agostinho, está portanto
ligada intimamente ao conceito de Corpo de Cristo, fundamentada na releitura
cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia,
na qual o Senhor nos dá seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Portanto, é
fundamental que a Igreja, povo de Deus, em sentido cristológico e não em
sentido sociológico, esteja verdadeiramente integrada em Cristo, que, segundo
afirma Agostinho em uma página maravilhosa, «reza por nós, reza em nós, é
rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele nossa voz e nós nele
a sua» (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).
Na
conclusão da carta apostólica Augustinum Hipponensem, João Paulo II quis
perguntar ao próprio santo o que podia dizer aos homens de hoje e responde
sobretudo com as palavras que Agostinho confiou em uma carta ditada pouco
depois de sua conversão: «Me parece que se deve levar aos homens a esperança de
encontrar a verdade» (Epistulae, 1,1); essa verdade que é Cristo, Deus
verdadeiro, a quem se dirige uma das orações mais lindas e famosas das
Confissões (X, 27, 38): «Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde
te amei! Estavas dentro de mim e eu estava fora, e aí te procurava. Eu,
disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo e
eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não
existiriam se em ti não existissem. Mas Tu me chamaste, clamaste e rompeste a
minha surdez. Brilhaste, resplandeceste e curaste a minha cegueira. Espargiste
tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Tu me tocaste, e agora estou
ardendo no desejo de tua paz».
Deste
modo, Agostinho encontrou a Deus e durante toda a sua vida fez sua experiência
até o ponto de que esta realidade – que é antes de tudo o encontro com uma
Pessoa, Jesus – mudou sua vida, como muda a de todos que, homens e mulheres, em
todo tempo, têm a graça de encontrar-se com Ele. Peçamos ao Senhor que nos dê
esta graça e nos faça encontrar assim sua paz.
Papa Bento XVI
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