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sexta-feira

Aparecida, nova Nazaré, casa de Maria!

nicho aparecida
Temos vários comentários, livros, artigos, poemas e obras de arte que procuraram expressar, não somente um sentimento afetuoso, mas também, uma consciência de fé muito segura, quanto ao artigo do Credo cristão católico que coloca em nossa boca o seguinte argumento: “E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem”. Eis o motivo que a teologia se dedica em aprofundar seus estudos sobre a vida e a missão da filha bendita de Joaquim e Ana, dentro da Economia da Salvação.
Não podemos viver um cristianismo sem pensá-lo, como dizia Santo Agostinho: “A fé e a razão são duas asas que nos levam para Deus”. Mistérios da Fé que envolve o poder e a ação da Trindade, não se provam em laboratório, nem pelas avançadas máquinas do mundo da ciência, mas podemos contemplá-los e comentá-los à luz dos métodos lícitos e reconhecidos da teologia. Pensar e crer, assim deve ser; trabalhar e rezar, meditar e aceitar a ação salvadora de Deus no mundo.
Quis o Senhor se revelar, procurando fazer isto da melhor forma possível que achou, afim da humanidade não ter repulsa à sua ação, nem achasse simples demais tal evento, sendo obra de um Deus tão grande. A Virgem Maria participa de uma forma ativa e dinâmica do feitio de Revelação que o Todo-poderoso utilizou afim de fazer-se conhecido pelos homens. Mesmo sendo preparada a uma missão que lhe imprimiria um caráter indelével, como o foi de fato, poderia Deus usá-la, sendo um mero instrumento, e depois deixar que Maria fosse viver sua vida, como se nada lhe tivesse acontecido, inclusive usufruindo dos prazeres mais horrendos do mundo. Porém, não foi assim, porque a Virgem filha de Sião[1] não foi meramente “usada por Deus”, mas obteve a graça de ser colaboradora do Senhor na restauração da vida da humanidade e na morte definitiva do pecado.
A perversidade foi extirpada do processo de concepção e formação dos membros e do gênio sacrossantos de Maria no ventre de Ana. O pecado (ou o domínio propenso para o mal), já nasceu morto como um aborto nas entranhas da esposa de São Joaquim, mesmo sendo ela uma pecadora que achou graça diante de Deus para ser avó de Jesus. Simplificando este argumento teológico delicado e perigoso, podemos dizer: assim como uma mãe grávida esperava um filho e fazia votos de que ele nascesse “todo perfeito”, tendo a consciência de que deveria ser normal em tudo, inclusive nas práticas de pecado, Ana assim esperava no nascimento de qualquer filho que de seu ventre saísse, como todas as mães da Judéia. Mas, Deus permitiu que Maria viesse ao mundo perfeita em tudo, igual a antiga Eva antes da queda, porém sem “a tendência ao pecado”. Sendo assim, Maria tinha uma deficiência aos olhos do mundo infrator, pois disposição à transgressão, frente à ordem natural e divina, não fazia parte do arquétipo genético da filha de Joaquim, pois o protótipo de Maria sem ultrapassar as leis humanas, teve a ação direta das mãos e do coração de Deus.
No nascimento da κεχαριτωμένη[2] se cumpriu a profecia promulgada pelo próprio Senhor: “Porei inimizade entre ti a Mulher” (Gn 3, 15). No fundo, não há muita discordância em relação às traduções[3]. Aqui vemos a grandeza do Senhor na vida da Mãe de Jesus o Cristo. Outro dado que devemos olhar com atenção deve ser colocado sobre o encontro da Virgem Maria com Isabel, grávida também, fruto de um episódio miraculoso. Da esposa de Zacarias nasceu João Batista. A frase a qual nos referimos para que tenhamos aplicação se encontra em São Lucas (1, 43), e conta a satisfação de Isabel pela presença da filha de Santa Ana em sua casa: “Donde me vem a honra que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”. Quem fala aqui é aquela que disse: “Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retirar o meu opróbrio perante os homens”[4].
Não nos esqueçamos de que o dogma fundamental de todo o cristianismo é de “Jesus Deus”, o Verbo de Deus encarnado (Jo 1, 14), logo Maria, sua Mãe, é Mãe de Deus ( Lc 1, 43). Trata-se, pois, de algo expresso e claramente revelado por Deus na Sagrada Escritura, confirmado para sempre pela Igreja no Concílio de Éfeso[5] como verdade de fé. Citemos as palavras de São Gregório de Nazianzo do século IV para expressar esta grandiosidade:
O próprio Filho de Deus, que existe desde toda a eternidade, o invisível, o incompreensível, incorpóreo, princípio que procede do princípio, a luz nascida da luz, a fonte da vida e da imortalidade, a expressão do arquétipo, divino, o selo inamovível, a imagem perfeita, a palavra e o pensamento do Pai, vem em ajuda da criatura feita à sua imagem, e por amor do homem se faz homem. Para purificar aqueles de quem se tornou semelhante, assume tudo o que é humano, exceto o pecado. Foi concebido por uma Virgem, já santificada pelo Espírito Santo no corpo e na alma, para honrar a maternidade e ao mesmo tempo exaltar a excelência da virgindade; e assumindo a humanidade sem deixar de ser Deus, uniu em si mesmo duas realidades contrárias, a saber, a carne e o espírito. Uma delas conferiu a divindade, a outra recebeu-a.[6]
Percebemos aqui o grande papel de Maria na história da Salvação, estreitamente unido ao mistério de Cristo e da Igreja. Não temos que perder estas referências essenciais dadas à doutrina cristológica, oferecendo a Mãe de Jesus o justo lugar, descobrindo sua vasta e inesgotável riqueza oferecida ao campo da fé verdadeira.
 
Em Aparecida conseguimos experimentar os aspectos centrais da Mariologia, porque a Igreja Peregrina pode ser facilmente identificada aos pés da Imagem da Imaculada.
Em Aparecida conseguimos experimentar os aspectos centrais da Mariologia, porque a Igreja Peregrina pode ser facilmente identificada aos pés da Imagem da Imaculada. Levando em conta a relação do povo de Deus com os mistérios da fé, a Virgem Mãe recebe um trato específico, porque não se pode negar, até pelos mais ferrenhos críticos, que sua missão na história da Salvação foi e é importante, tornando-se até hoje um fato mistérico, digno de fé, incompreensível à razão humana, mas credível e aceitável ao coração de todo aquele que abraça a mensagem do Evangelho genuíno. O franciscano Raniero Cantalamessa no livro: “Maria um espelho para a Igreja”, afirma que “Nossa Senhora é, antes de tudo, um capítulo da Palavra de Deus”[7]. Seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, ajudados pela Lumen Gentium no capítulo oitavo, entendemos o que autor italiano quis apregoar nesta obra:
De fato, chegou o momento de não mais fazer de Maria um motivo de discussão e divisão entre os cristãos, mas sim uma ocasião de unidade e fraternidade entre eles. Maria aparece-nos como o sinal de uma Igreja dos gentios, sendo por isso mesmo o mais forte para a unidade.[8]
Com efeito, o papel que Deus assinala na salvação do mundo com Maria, requer-se dos cristãos, não só uma acolhida e atenção, mas também gestos concretos que se traduzam na vida de todos os batizados. As atitudes evangélicas dAquela que precede a Igreja na fé e na santidade, devem fazer parte da nossa meditação cotidiana, afim de tornar-nos mais parecidos com ela diante de Deus, meta final e desejosa da parte do Senhor para todo o gênero humano. Não há mais tempo de nos apegarmos a ideologias contrárias à própria vontade da Trindade, quando o tema teológico é a pessoa da Mãe de Jesus. Sua missão na Igreja nunca sessou, pois, em toda vida da Comunidade, a Virgem Santa sempre reuniu filhos dispersos e os conduziu a Jesus.
Misteriosamente encontramos em diversas partes do mundo, lugares dedicados à Mãe de Cristo, vistos como oásis para os cristãos sedentos do socorro que vem do alto. Maria conduz todos para seu Filho: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2, 5). O povo acorre a estes centros de peregrinações atraídos pela Virgem Mãe e acaba se encontrando com Jesus Eucarístico nos altares principais dos santuários. Estas mesas sacrificais não cessam de alimentar a todo aquele que se coloca em marcha para receber “o Pão descido do céu” (Jo 6, 51). Repetimos, Aparecida é para todos os devotos um lugar de impacto entre Deus e seu povo, onde Maria é a medianeira. Olhar para pequenina Imagem lá em seu trono, ricamente trabalhado pela oferta generosa dos devotos, é ter a certeza que ali não devemos ter dúvida do amparo divino. As terras de Aparecida foram para nossos antepassados nestes trezentos anos, e é para nós e para as gerações futuras, uma terra hierofânica[9].
Totem marcará 300 dias para o Jubileu de Aparecida (Elisangela Cavalheiro)
Aparecida é a nova Nazaré, prepara por Deus para ser casa de Maria no meio de seu povo, lugar de visitação dos filhos da Igreja, casa de misericórdia, recinto operoso em que o Espírito Santo usa para dar vigor a uma parcela da Igreja Universal, assim como fez em Pentecostes (At 1, 14; 2, 1). Se “Fátima é o altar do mundo”, segundo São João Paulo II, Aparecida tem o manto azul de Maria que cobre todas as raças, povos, línguas e nações. Aqui entendemos, alegoricamente falando, que se o “povo brasileiro é conhecido como um povo hospitaleiro”, deve-se ao fato de sermos a Nação proprietária do manto da Mãe de Jesus. Debaixo deste manto, todos nós queremos estar. Deus tem sempre algo a dizer para cada pessoa em particular que estaciona o trem da vida, nem que seja por uns breves segundos, diante da Virgem de Aparecida e troca olhares com ela. Trago aqui umas das afirmações de Lutero, para ajudarmos nesta reflexão. Mesmo depois de acontecer a revolução de 1517, jamais deixou de ser um defensor e devoto de Nossa Senhora. Vejamos:
Deus não recebeu sua divindade de Maria; contudo, não segue que seja, por conseguinte, errado asseverar que Deus foi conduzido por Maria, que Deus é fruto do ventre de Maria, e que Maria resta a Mãe de Deus. Assim sendo, é a Mãe verdadeira de Deus, a portadora de Deus. Maria amamentou o próprio Deus; ele foi embalado para adormecer por ela, foi alimentado por ela, etc. Igualmente para o Deus e como o Homem: um único ser, um único filho, um único Jesus, e não “dois Cristos”. De tal modo, que sua criança não consiste em dois filhos (...) mesmo que tenha duas naturezas. É um artigo de fé que Maria é a Mãe do Senhor e, ainda, é virgem. (...) Cristo, cremos, saiu de um ventre que deixou perfeitamente intacto.[10]
A Mãe do Senhor exerce uma influência especial no modo de orar dos fiéis. A doutrina e o culto mariano não são frutos de um sentimentalismo. O mistério realizado na Virgem Maria é uma verdade revelada que se impõe à inteligência dos crentes. Aos que são membros da Igreja tem a missão de estudar e ensinar o que o Espírito Santo os conceder para aprofundamento da fé, quanto o assunto de nosso interesse for a união hipostática de Cristo, tendo como protagonistas principais o Pai e Maria.
O Concílio Vaticano II pediu que se evitasse o falso exagero (LG 67), a atitude maximalista que pretende estender a Virgem Mãe as prerrogativas de Cristo e todos os carismas da Igreja. Sempre é necessário manter a infinita diferença que existe entre a pessoa humana de Maria e a pessoa divina de Jesus, mas Jesus não poderia ser um igual a nós sem Maria, nem Maria poderia ser tão importante para Deus e para o mundo, se não fosse em função do próprio Jesus Cristo. Também exortou o Concílio que se evitasse a excessiva estreiteza do espírito minimalista que usa de interpretações exegéticas sobre os atos de culto, pretendendo reduzir, e até retirar a importância da Virgem Maria do Plano Divino da Salvação; assim como sua virgindade perpétua, sua santidade da vida e sua missão na Igreja, em nome de uma “teologia sadia”. Não nos esqueçamos de que o Vaticano II nos oferece um critério de discernimento majestoso que nos permite discernir sobre a autêntica doutrina mariológica: “Na santa Igreja, Maria ocupa o lugar mais alto depois de Cristo, e o mais próximo de nós” (LG 54).
Aqui nasce a necessidade de olhar para a Mariologia, acolhendo-a enquanto ciência e não um apêndice da Teologia. Tem um princípio próprio e fundamental que a faz distinguir formalmente das outras partes da Teologia. É a reflexão mariológica como uma fonte de unidade de todas as verdades cognoscíveis sobre a Mãe de Deus. Isto não é e não foi tão fácil! Até mesmo os teólogos cristãos se dividiram quando se falou deste assunto, ao pretender elevar a mariologia à categoria de ciência.
Aspiremos sempre a meditação sobre a importância da Virgem esposa de São José, afim de conhecer seu valor, munidos da Escritura e da magnífica Tradição bi-milenar da Igreja, assistida pelo Paráclito, mediante a ação do Magistério. Se acentuarmos nossa atenção, perceberemos que a Virgem Maria está presente nos três momentos constitutivos dos mistérios do Cristianismo, a saber, a Encarnação, a Páscoa e Pentecostes. A Encarnação aconteceu nela, em sua pessoa, em seu ventre que recebeu Jesus Redentor do mundo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Quanto ao mistério Pascal, ela estava aos pés da Cruz (cf. Jo 19, 25), testemunhando privilegiada e dolorosamente, nossa Redenção, realizada por seu Filho, que destruiu o pecado e fez nova todas as coisas (Ap 21, 5). Também estava ela em Pentecostes, na vinda do Santificador (cf. At. 1, 14), que prolonga na Igreja de Jesus Cristo a Redenção por meio dos Sacramentos. Então, Maria não pode ser excluída por simples gosto reflexivo do mistério do Reino de Deus que foi desejado pelo Pai, inaugurado por Cristo, indo historicamente constituindo-se pela Igreja através da ação do Espírito Santo, que nos encaminha para a realização plena na Eternidade. Por isto, este tema é muito apropriado, para compreendermos o valor da pessoa de Maria em Aparecida, a partir do conceito de Reino de Deus e da Eclesiologia.
Autor: Côn. José Wilson Fabrício da Silva, crl

Fonte: http://www.a12.com/santuario-nacional/formacao/detalhes/aparecida-nova-nazare-casa-de-maria-1
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[1]      A Filha de Sião é primeiramente o povo de Israel, simbolizado pela própria cidade de Jerusalém, situada no Monte Sião. Israel, o da Antiga Aliança, pode ainda hoje escutar este convite à alegria, presente em tantos profetas: o Senhor não abandonou o Seu povo; vem a ele para salvá-lo nos apertos da história. O Senhor vem! E Israel, o antigo povo, continua a esperar o Messias prometido, como sinal da proximidade e da salvação abençoada do Senhor Deus. Mas, a Filha de Sião é também a Virgem Maria, que em si sintetiza e personifica o povo da Antiga Aliança. Isto aparece bem claro na Escritura se compararmos a profecia de Sofonias 3,14-17 e Lc 1,26-31. No Novo Testamento a Virgem Santíssima é declarada Filha de Sião, personificação doa antigo povo. Veja só, comparando os textos sagrados segundo Lucas e Sofonias: Sf vv. 14-15: “Rejubila, filha de Sião, solta gritos de alegria, Israel, alegra-te filha de Jerusalém!’ O Senhor revogou tua sentença, eliminou teu inimigo. O Senhor está no meio de ti: não verás mais a desgraça”// Lc v. 28: “Alegra-te, Cheia de graça! O Senhor está contigo!” – Sf v. 16: “Naquele dia será dito a Jerusalém: ‘Não temas, Sião! Não desfaleçam as tuas mãos!’”//Lc v. 30: “Não tenhas medo, Maria! Encontraste graça junto de Deus!” – Sf v. 17: “O Senhor, o teu Deus, está no meio de ti, um herói que salva!”// Lc v. 31: “Eis que conceberás no teu seio (= dentro de ti, em ti) e darás à luz um filho, e o chamarás com o nome de Jesus (= o Senhor salva)!” Eis, portanto: Maria Virgem é personificação do Antigo Israel, mas é também prenúncio do Novo Israel, que é a Igreja: ela e a Igreja são a Mulher prenunciada por Gn 3,15, presente em Jo 2,4; 19,26; Gl 4,4; Ap 12,1ss. Aqui, damos um passo adiante: a Filha de Sião é a Igreja, prefigurada em Maria Virgem e Mãe: o Senhor que habitou no seio da Virgem promete que habitará sempre no seio da Virgem Igreja, Sua Esposa: “Eu, o Senhor, vou morar em teu meio!” Por isso a esperança, por isso a certeza da Mãe Igreja e de cada um de nós, seus membros e seus filhos: o Senhor está conosco! Mesmo nos maiores apertos da vida o Senhor Salvador que veio no Natal cumprindo as promessas antigas, continua no nosso meio, como Ele mesmo prometera: “Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20). É Ele que a Igreja espera, pois já conosco, manifestar-Se-á em glória no Seu Dia, Dia eterno, Dia bendito, Dia de salvação perpétua! Então, coragem: “Erguei-vos e levantai a cabeça, pois a vossa libertação está próxima!” (Lc 21,28). (Palavras de Dom Henrique Soares da Costa – Bispo diocesano de Palmares – PE).
[2]             Cheia de Graça.
[3]             Talvez é uma coisa boa ter presente, a forma verbal desse vocábulo, isto é, estamos diante de um particípio passivo. A voz passiva sublinha o fato de tratar-se de algo “sofrido”, isto é, não é a pessoa mesma que faz a ação, mas sofre a ação. Portanto, Maria foi “enchida” de graça! Este Dom não é algo que é inerente a ela mesma, mas foi um favor especial dado pelo próprio Deus.
[4]             Lc 1, 25. O verbo grego usado é πεποίηκεν (pepoiēken). É um perfeito indicativo do verbo “poieo”, fazer. É evidente que tem uma diferença entre os dois termos usados. Um verbo especial é usado para descrever o que aconteceu com Maria, pois quem dela nascerá é muito maior do que João Batista.
[5]             Ano 431 d. C.
[6]             LITURGIA DAS HORAS SEGUNDO O RITO ROMANO. I Tempo do Advento e Tempo do Natal. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 130-131.
[7]             Cf. CANTALAMESSA, Raniero. Maria, um espelho para a Igreja. 14ª ed. Aparecida: Santuário, 2016, p.5.
[8]             Id. p. 7.
[9]             Hierofania (do grego hieros (ἱερός) = santo, sagrado; faneia (φαίνειν) = manifesto) pode ser definido como o ato de manifestação do Sagrado.
[10]             Martin Luther. – in: J. Pelikan (trad. ing.). LW-Luther’s Work. 1955, vol.11, pp.319-320; e (…) vol.6. p.510.

terça-feira

Apontamentos de liturgia do Cardeal Sarah

Desde o Concílio, o CENTRO da liturgia e da Igreja não é mais Deus nem a adoração a Ele

Cardeal Sarah

Certamente, o Concílio Vaticano II desejava fomentar uma maior participação ativa do povo de Deus e fazê-la progredir dia a dia na vida cristã dos fiéis (ver Sacrosanctum Concilium, 1). Certamente, algumas boas iniciativas foram tomadas nesse sentido. No entanto, não podemos fechar os olhos ao desastre, à devastação e ao cisma que os modernos promotores de uma liturgia viva provocaram remodelando a liturgia da Igreja segundo as suas ideias. Eles esqueceram que o ato litúrgico não é apenas uma ORAÇÃO, mas também e sobretudo um MISTÉRIO em que algo é realizado para nós que não podemos compreender plenamente, mas que devemos aceitar e receber em fé, amor, obediência e adorar no silêncio. E este é o verdadeiro significado da participação ativa dos fiéis. Não se trata de uma atividade exclusivamente externa, da distribuição de papéis ou de funções na liturgia, mas sim de uma receptividade intensamente ativa: esta recepção é, em Cristo e com Cristo, a humilde oferenda de si mesmo em oração silenciosa e uma atitude totalmente contemplativa.

A grave crise da fé, não só ao nível dos fiéis cristãos, mas também e sobretudo entre muitos sacerdotes e bispos, tornaram-nos incapazes de compreender a liturgia eucarística como um sacrifício, como idêntico ao ato realizado de uma vez por todas por Jesus Cristo, fazendo presente o Sacrifício da Cruz de uma maneira não sangrenta, em toda a Igreja, através de diferentes épocas, lugares, povos e nações.

Há muitas vezes uma tendência sacrílega para reduzir a Santa Missa a uma simples refeição de convívio, a celebração de uma festa profana, A celebração da comunidade de si mesma, ou pior ainda, uma terrível diversão da angústia de uma vida que já não tem significado ou do medo de encontrar-se com Deus face a face, porque Seu olhar nos desvela e nos obriga a olhar de forma verdadeira e inflexível a feiúra da nossa vida interior. Mas a Santa Missa não é uma diversão. É o sacrifício vivo de Cristo que morreu na cruz para nos libertar do pecado e da morte, com o propósito de revelar o amor e a glória de Deus Pai.

Muitos católicos não sabem que o propósito final de cada celebração litúrgica é a glória e a adoração de Deus, a salvação e a santificação dos seres humanos, uma vez que na liturgia “Deus é perfeitamente glorificado e os homens são santificados” ( Sacrosanctum concilium, 7 ). A maioria dos fiéis – incluindo sacerdotes e bispos – não conhece este ensinamento do Concílio. Assim como eles não sabem que os verdadeiros adoradores de Deus não são aqueles que reformam a liturgia de acordo com suas próprias ideias e criatividade, tornando-a algo agradável para o mundo, mas, sim, aqueles que reformam o mundo em profundidade com o Evangelho, para permitir o acesso a uma liturgia que é o reflexo da liturgia que é celebrada de toda a eternidade na Jerusalém celeste.

Como Bento XVI enfatizou muitas vezes, na raiz da liturgia está a adoração e, portanto, Deus. Por isso, é necessário reconhecer que a grave e profunda crise que atingiu a liturgia e a própria Igreja desde o Concílio se deve ao fato de que seu CENTRO não é mais Deus e a adoração a Ele, mas sim os homens e a sua alegada capacidade de “fazer” algo para se manterem ocupados durante as celebrações eucarísticas.

Ainda hoje, um número significativo de líderes da Igreja subestima a grave crise que atravessa a Igreja: o relativismo no ensino doutrinário, moral e disciplinar, graves abusos, a dessacralização e banalização da Sagrada Liturgia, uma visão meramente social e horizontal da Igreja missão. Muitos creem e declaram alto e longamente que o Concílio Vaticano II trouxe uma verdadeira primavera na Igreja. No entanto, um número crescente de líderes da Igreja vê esta “primavera” como uma rejeição, uma renúncia à sua herança secular, ou mesmo como um questionamento radical do seu passado e da Tradição. A Europa política é repreendida por abandonar ou negar suas raízes cristãs. Mas a primeira a ter abandonado suas raízes e passado cristãos é indiscutivelmente a Igreja Católica pós-conciliar.

(*) Excerto da tradução exclusiva inglesa da mensagem enviada pelo Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos ao Colóquio “A Fonte do Futuro”, por ocasião do 10º aniversário da publicação do Motu Proprio Summorum Pontificum pelo Papa Bento XVI, em 29 de março – 1 de abril de 2017, Herzogenrath, perto de Aachen (Alemanha).

Fonte: The Catholic World Report – Cardinal Sarah’s Adress on the 1oth Anniversary of “Summorum Pontificum”


"A criatividade nunca esteve presente na Liturgia cristã"
Dom Henrique Soares da Costa


Criatividade. Este conceito nunca esteve presente na Liturgia cristã. É-lhe totalmente estranho!

Na antiguidade mais primitiva, não havia ainda textos litúrgicos formados. É natural, é claro: a Igreja não nascera feita! Fundada pelo Cristo-Deus, foi plasmada pelo Seu Santo Espírito, conforme Sua própria promessa.

Mesmo não havendo ainda textos fixos para o rito litúrgico, havia, no entanto, esquemas fixos, que os ministros sagrados deveriam seguir à risca. Portanto, cada ministro, tanto quanto pudesse, uns mais, outros, menos, compunham as orações. Em geral, escreviam-nas antes. Mas, dentro de um esquema fixo. A palavra chave nunca foi criatividade, mas fidelidade à Regra de Fé da Igreja e à lex orandi, isto é, à norma de oração da Igreja.

Logo cedo, os primeiros formulários litúrgicos foram sendo colocados por escrito e fixados. Finalmente, no século IV, com a liberdade de culto concedida aos cristãos, surgiram os grandes textos litúrgicos no Oriente, como a estupenda liturgia de São João Crisóstomo, e do Ocidente (pense-se na antiquissíma Tradição Apostólica de Hipólito de Roma). No Ocidente, a formação dos grandes textos foi mais complexa por vários motivos históricos e culturais. Em todo caso, no séculos VI e VII já se tinham os grandes formulários litúrgicos e a soleníssima Missa Estacional romana, que influenciaria toda a liturgia da Missa da Igreja latina (a Igreja do Ocidente, da qual o Bispo de Roma é o Patriarca, além de Papa de toda a Igreja do Oriente e Ocidente).

Em toda esta complexa e rica evolução histórica nunca se teve em mira a criatividade, mas a ortodoxia. Aliás, a palavra ortodoxia significa reta fé (reta opinião) e também reto louvor, reta glorificação de Deus! Assim, na Celebração litúrgica, o importante, a finalidade é o reto louvor ao Senhor Deus, exprimindo a reta fé pelos ritos sagrados que tornam atuantes na vida de cada crente e de toda a Igreja a salvação celebrada. A criatividade como ideal, objetivo e valor em si simplesmente não faz parte da realidade litúrgica, ao menos não nos vinte e um séculos de história da Igreja do Ocidente e do Oriente. Sendo assim, cedo ou tarde, com a graça de Deus, a ideologia da criatividade litúrgica desaparecerá do horizonte da Igreja, pois não faz parte do genuíno sentir eclesial. É questão de tempo...


CONSTITUIÇÃO CONCILIAR
SACROSANCTUM CONCILIUM
SOBRE A SAGRADA LITURGIA

2. A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, «se opera o fruto da nossa Redenção» (1), contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultâneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos (2). A Liturgia, ao mesmo tempo que edifica os que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em morada de Deus no Espírito (3), até à medida da idade da plenitude de Cristo (4), robustece de modo admirável as suas energias para pregar Cristo e mostra a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações (5), para reunir à sua sombra os filhos de Deus dispersos (6), até que haja um só rebanho e um só pastor (7).

presença de Cristo na Liturgia

7. Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» (20) -quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza (21). Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20).

Em tão grande obra, que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai.

Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a Deus o culto público integral.

Portanto, qualquer celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada par excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja.

A Liturgia terrena, antecipação da Liturgia celeste

8. Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo (22); por meio dela cantamos ao Senhor um hino de glória com toda a milícia do exército celestial, esperamos ter parte e comunhão com os Santos cuja memória veneramos, e aguardamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, até Ele aparecer como nossa vida e nós aparecermos com Ele na glória (23).

Lugar da Liturgia na vida da Igreja

9. A sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja, porque os homens, antes de poderem participar na Liturgia, precisam de ouvir o apelo à fé e à conversão: «Como hão-de invocar aquele em quem não creram? Ou como hão-de crer sem o terem ouvido? Como poderão ouvir se não houver quem pregue? E como se há-de pregar se não houver quem seja enviado?» (Rom. 10, 14-15).

É por este motivo que a Igreja anuncia a mensagem de salvação aos que ainda não têm fé, para que todos os homens venham a conhecer o único Deus verdadeiro e o Seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam dos seus caminhos pela penitência (24). Aos que crêem, tem o dever de pregar constantemente a fé e a penitência, de dispô-los aos Sacramentos, de ensiná-los a guardar tudo o que Cristo mandou (25), de estimulá-los a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens.

10. Contudo, a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Batismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

A Liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos «mistérios pascais», a viverem «unidos no amor» (26); pede «que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé» (27); e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo. Da Liturgia, pois, em especial da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja.

A participação dos fiéis

11. Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão (28). Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente.

EDUCAÇÃO LITÚRGICA E PARTICIPAÇÃO ATIVA

14. É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do Batismo, um direito e um dever do povo cristão, «raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido» (1 Ped. 2,9; cfr. 2, 4-5).

Na reforma e incremento da sagrada Liturgia, deve dar-se a maior atenção a esta plena e ativa participação de todo o povo porque ela é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão. Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo empenho, através da devida educação.


Mas, porque não há qualquer esperança de que tal aconteça, se antes os pastores de almas se não imbuírem plenamente do espírito e da virtude da Liturgia e não se fizerem mestres nela, é absolutamente necessário que se providencie em primeiro lugar à formação litúrgica do clero. Por tal razões este sagrado Concílio determinou quanto segue: