Quem é Santo Agostinho para os cônegos regulares
das mais diversas congregações em todo o mundo? Aliás, quem é Santo Agostinho,
o que ele tem haver com os cônegos regrantes? Estas são perguntas que todos os
cônegos baixo a santa Regra deve fazer. Hoje, mais do que nunca, os cônegos devem
se inspirar na vida, na espiritualidade e na forma pastoral de conduzir a
Igreja que teve o grande Doutor. Nós tivemos a graça de receber no século XI do
papa São Gregório VII o reconhecimento da vida regrante, tendo como orientador
na vida e no carisma a Santo Agostinho. Nós, os cônegos regulares abandonando
as outras regras conhecidas da época, por exemplo a regra de São Codegrango,
tomamos a Regra agostiniana como bússola para o nosso caminhar na vida
religiosa, por isso, nos alegramos em ver Santo Agostinho como pai da vida
canonical.
Vamos agora em poucas palavras resumir a vida e
obra do Doutor da Graça. Espero que todos os nossos leitores aproveitem
bastante cada parágrafo deste texto.
Por sua singular relevância, Santo Agostinho teve
uma influência enorme e poderia afirmar-se, por uma parte, que todos os
caminhos da literatura cristã latina levam a Hipona (hoje Anaba, na costa da
Argélia), localidade na qual era bispo e, por outra, que desta cidade da África
romana, na qual Agostinho foi bispo desde o ano 395 até 430, partem muitos
outros caminhos do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
Poucas vezes uma civilização encontrou um espírito
tão grande, capaz de acolher os valores e de exaltar sua intrínseca riqueza, inventando
ideias e formas das quais se alimentariam as gerações posteriores, tal
como sublinhou também Paulo VI: «Pode-se dizer que todo o pensamento da
antiguidade conflui em sua obra e dessa se derivam correntes de pensamento que
penetram toda a tradição doutrinal dos séculos posteriores» (AAS, 62, 1970, p.
426).
Agostinho é também o padre da Igreja que deixou o
maior número de obras. Seu biógrafo, Posídio, diz: parecia impossível que um
homem pudesse escrever tanto em vida. Em um próximo encontro falaremos destas
obras. Hoje, nossa atenção se concentrará em sua vida, que pôde reconstruir-se
com seus escritos, e em particular com as «Confissões», sua extraordinária
biografia espiritual escrita para louvor de Deus, sua obra mais famosa.
As «Confissões» constituem, precisamente por sua
atenção à interioridade e à psicologia, um modelo único na literatura
ocidental, e não só ocidental, inclusive a não-religiosa, ate a modernidade.
Esta atenção pela vida espiritual, pelo
mistério do eu, pelo mistério de Deus que se esconde no eu, é algo
extraordinário, sem precedentes, e permanece para sempre como um «cume»
espiritual.
Mas voltamos à sua vida. Agostinho nasceu em
Tagaste, na província de Numídia, na África romana, em 13 de novembro de 354,
filho de Patrício, um pagão que depois chegou a ser catecúmeno, e de Mônica,
fervorosa cristã.
Esta mulher apaixonada, venerada como santa,
exerceu em seu filho uma enorme influência e o educou na fé cristã. Agostinho
havia recebido também o sal, como sinal da acolhida no catecumenato. E sempre
se fascinou pela figura de Jesus Cristo; e mais, diz que sempre amou
Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial,
como acontece também hoje com muitos jovens.
Agostinho tinha também um irmão, Navigio, e uma
irmã, da qual desconhecemos o nome e que, após ficar viúva, converteu-se em
superiora de um mosteiro feminino.
O rapaz, de agudíssima inteligência, recebeu uma boa
educação, ainda que nem sempre foi estudante exemplar. De qualquer forma,
aprendeu bem a Gramática, primeiro em sua cidade natal e depois em Madaura e, a
partir do ano 370, Retórica, em Cartago, capital da África romana: chegou a
dominar perfeitamente o Latim, mas não alcançou o mesmo nível em grego, nem
aprendeu o púnico, língua que seus antepassados falavam.
Em Cartago, Agostinho leu pela primeira vez o
«Hortensius», obra de Cícero que depois se perderia e que se marca no início de
seu caminho rumo à conversão. O texto ciceroniano despertou nele o amor pela
sabedoria, como escrevia já sendo bispo nas «Confissões»: «Aquele livro mudou
meus sentimentos», até o ponto de que «de repente todas as minhas vãs
esperanças envelheceram ante meus olhos e comecei a acender-me em um incrível
ardor do coração por uma sabedoria imortal» (III, 4, 7).
Mas, dado que estava convencido de que sem Jesus
não se pode dizer que se encontrou efetivamente a verdade, e dado que nesse
livro apaixonante faltava esse nome, ao acabar de lê-lo começou a ler a
Escritura, a Bíblia. Ficou decepcionado. Não só porque o estilo da tradução ao
Latim da Sagrada Escritura era deficiente, mas também porque o mesmo conteúdo
não lhe parecia satisfatório.
Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras
vicissitudes humanas, ele não encontrava a altura da filosofia, o esplendor da
busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e
buscava uma religião que respondesse a seu desejo de verdade e também a seu
desejo de aproximar-se de Jesus.
Desta maneira, caiu na rede dos maniqueístas, que
se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional.
Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim
se explicaria toda a complexidade da história humana. A moral dualista também
atraía Santo Agostinho, pois comportava uma moral muito elevada para os
eleitos: e para quem, como ele, aderia à mesma era possível uma vida muito mais
adequada à situação da época, especialmente se era jovem.
Tornou-se, portanto, maniqueísta, convencido nesse
momento de que havia encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade
e amor a Jesus Cristo. E tirou uma vantagem concreta para sua vida: a adesão
aos maniqueístas abria fáceis perspectivas de carreira. Aderir a essa religião,
que contava com muitas personalidades influentes, permitia-lhe continuar sua
relação com uma mulher e continuar com sua carreira.
Desta mulher teve um filho, Adeodato, a quem amava
muito, sumamente inteligente, que depois estaria presente em sua preparação
para o batismo no lago de Como, participando nesses «Diálogos» que Santo
Agostinho nos deixou. Infelizmente, o rapaz faleceu prematuramente.
Sendo professor de Gramática, por volta dos vinte
anos, em sua cidade natal, logo regressou a Cartago, onde se converteu em
um brilhante e famoso professor de Retórica. Com o passar do tempo, contudo,
Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueístas, que o decepcionaram
precisamente desde o ponto de vista intelectual, pois eram incapazes de
resolver suas dúvidas, e se transferiu a Roma, depois a Milão, onde residia na
corte imperial e onde havia obtido um cargo de prestígio, por recomendação do
prefeito de Roma, o pagão Símaco, que era hostil ao bispo de Milão, Santo
Ambrósio.
Em Milão, Agostinho se acostumou a escutar, em um
primeiro momento com o objetivo de enriquecer sua bagagem retórica, as
belíssimas pregações do bispo Ambrósio, que havia sido representante do
imperador para a Itália do Norte. O retórico africano ficou fascinado pela
palavra do grande prelado milanês, não só por sua retórica. O conteúdo foi
tocando cada vez mais seu coração.
O grande problema do Antigo Testamento, a falta de
beleza retórica, de nível filosófico, resolveu-se com as pregações de Santo
Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho
compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Deste
modo, encontrou a chave para compreender a beleza, a profundidade inclusive
filosófica do Antigo Testamento e compreendeu toda a unidade do mistério de
Cristo na história, assim como a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no
Logos, em Cristo, Verbo eterno, que se fez carne.
Depois, Agostinho percebeu que a literatura
alegórica da Escritura e a filosofia neoplatônica do bispo de Milão lhe
permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era mais jovem, em
seu primeiro contato com os textos bíblicos, haviam lhe parecido insuperáveis.
Agostinho continuou a leitura dos escritos dos
filósofos com a da Escritura, e sobretudo das cartas de São Paulo. A conversão
ao cristianismo, em 15 de agosto de 386, marcou portanto o final de um longo e
agitado caminho interior, do qual continuaremos falando em outra catequese. O
africano se mudou para o campo, ao norte de Milão, ao longo de Como, com sua
mãe, Mônica, o filho Adeodato, e um pequeno grupo de amigos, para preparar-se
para o batismo. Deste modo, aos 32 anos, Agostinho foi batizado por Ambrósio em
24 de abril de 387, durante a vigília pascoal na catedral de Milão.
Após o batismo, Agostinho decidiu regressar à África
com seus amigos, com a ideia de levar vida em comum, de caráter monástico, ao
serviço de Deus. Mas em Óstia, enquanto esperava para embarcar, sua mãe se
enfermou e pouco depois morreu, destroçando o coração do filho.
Após regressar finalmente à sua pátria, o
convertido se estabeleceu em Hipona para fundar um mosteiro. Nessa cidade da
costa africana, apesar de resistir-se à idéia, foi ordenado presbítero no ano
391 e começou com alguns companheiros a vida monástica na qual estava pensando
há algum tempo, dividindo seu tempo entre a oração, o estudo e a pregação.
Queria estar ao serviço da verdade, não se sentia
chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que o chamado de Deus
significava ser pastor entre os demais e assim oferecer o dom da verdade aos
outros. Em Hipona, quatro anos depois, no ano 395, foi ordenado bispo.
Continuando com o aprofundamento no estudo das
Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho se converteu em um bispo
exemplar, com um incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por
semana a seus fiéis, ajudava os pobres e os órfãos, atendia a formação do clero
e a organização dos mosteiros femininos e masculinos.
Em pouco tempo, o antigo professor de Retórica se
converteu em um dos expoentes mais importantes do cristianismo dessa época:
sumamente ativo no governo de sua diocese, com notáveis implicações também
civis, em seus mais de 35 anos de episcopado, o bispo de Hipona exerceu uma
ampla influência na guia da Igreja Católica da África romana e mais em geral no
cristianismo de sua época, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes
e desagregadoras, como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que
colocavam em perigo a fé cristã no único Deus e rico em misericórdia.
Agostinho se confiou a Deus cada dia, até o final
de sua vida: contraiu febre, enquanto a cidade de Hipona se encontrava
assediada há quase três meses por vândalos invasores. O bispo, conta seu amigo
Posídio na «Vita Augustini», pediu que transcrevessem com letra grande os
salmos penitenciais «e pediu que colassem as folhas na parede, de maneira que
desde a cama em sua enfermidade pudesse ver e ler, e chorava sem interrupção
lágrimas quentes» (31, 2). Assim passaram os últimos dias da vida de Agostinho,
que faleceu em 28 de agosto do ano 430, sem ter completado 76 anos. Dedicaremos
os próximos encontros a suas obras, à sua mensagem e à sua experiência
interior.
A Conversão
Ainda hoje é possível recorrer às vivências de
Santo Agostinho, graças sobretudo às «Confissões», escritas para o louvor de
Deus, que constituem a origem de uma das formas literárias mais específicas do
Ocidente, a autobiografia, ou seja, a expressão do conhecimento de si mesmo.
Quem quer que se aproxime deste extraordinário e fascinante livro, ainda hoje
sumamente lido, percebe facilmente que a conversão de Agostinho não foi
repentina nem aconteceu plenamente desde o início, mas que pode ser
definida mais como um autêntico caminho, que continua sendo um modelo para cada
um de nós.
Este itinerário culminou certamente com a conversão
e depois com o batismo, mas não se concluiu com aquela vigília pascal do ano
387, quando em Milão o professor de retórica africano foi batizado pelo bispo
Ambrósio. O caminho de conversão de Agostinho continuou humildemente até o
final de sua vida, até o ponto de que se pode verdadeiramente dizer que suas
diferentes etapas – podemos distinguir facilmente três – são uma única e grande
conversão.
A primeira conversão
Santo Agostinho foi um buscador apaixonado da
verdade: desde o início e depois durante toda a sua vida. A primeira etapa em
seu caminho de conversão se realizou precisamente na aproximação progressiva ao
cristianismo. Na realidade, ele havia recebido da mãe Mônica, com a qual sempre
esteve muito unido, uma educação cristã e, apesar de que havia vivido nos anos
de juventude uma vida desordenada, sempre sentiu uma profunda atração por
Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele
mesmo sublinha (cf. «Confissões», III, 4, 8).
Mas a filosofia, sobretudo a de orientação
platônica, também havia contribuído para aproximá-lo de Cristo,
manifestando-lhe a existência do Logos, a razão criadora. Os livros dos
filósofos lhe indicavam que existe a razão, da qual procede todo o mundo, mas
não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia tão afastado. Só a leitura
das cartas de São Paulo, na fé da Igreja Católica, revelou-lhe plenamente a
verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho em uma das páginas mais
famosas das «Confissões»: conta que, no tormento de suas reflexões, retirado em
um jardim, escutou de repente uma voz infantil que repetia uma canção, nunca
antes escutada: «tolle,, lege, tolle, lege», «toma, lê, toma, lê» (VIII, 12,
29). Então se lembrou da conversão de Antônio, pai do monaquismo, e com atenção
voltou a tomar um livro de São Paulo que pouco antes tinha entre as mãos:
abriu-o e o olhar se fixou na passagem da carta aos Romanos na qual o apóstolo
exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14).
Ele havia compreendido que essa palavra, naquele
momento, dirigia-se pessoalmente a ele, procedia de Deus através do apóstolo e
lhe indicava o que ele tinha de fazer nesse momento. Deste modo sentiu como
desapareciam as trevas da dúvida e era libertado para entregar-se totalmente a
Cristo: «Havias convertido a ti meu ser», comenta («Confissões», VIII, 12, 30).
Esta foi a primeira e decisiva conversão.
O professor de retórica africano chegou a esta
etapa fundamental em seu longo caminho graças à sua paixão pelo homem e pela
verdade, paixão que o levou a buscar a Deus, grande e inacessível. A fé em
Cristo o fez compreender que Deus não estava tão afastado como parecia. Ele se
havia feito próximo de nós, convertendo-se em um de nós. Neste sentido, a fé em
Cristo levou a cumprimento a longa busca de Santo Agostinho no caminho da
verdade. Só um Deus que se fez «tocável», um de nós, era, em última instância,
um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual se podia viver e com o qual se podia
viver.
A segunda conversão
É um caminho que deve ser percorrido com valentia e
ao mesmo tempo com humildade, abertos a uma purificação permanente, algo que
cada um de nós sempre precisa. Mas o caminho de Agostinho não havia concluído
com aquela vigília pascal do ano 387, como dissemos. Ao regressar à África,
fundou um pequeno mosteiro e se retirou nele, junto a uns poucos amigos, para
dedicar-se à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho de sua vida.
Agora estava chamado a viver totalmente para a verdade, com a verdade, na
amizade de Cristo, que é a verdade. Um lindo sonho que durou três anos, até
que, apesar dele, foi consagrado sacerdote em Hipona e destinado a servir aos
fiéis. Certamente continuou vivendo com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de
todos. Isso era muito difícil para ele, mas compreendeu desde o início que só
vivendo para os demais, e não simplesmente para sua contemplação privada, podia
realmente viver com Cristo e por Cristo.
Deste modo, renunciando a uma vida consagrada só à
meditação, Agostinho aprendeu, às vezes com dificuldade, a pôr à disposição o
fruto de sua inteligência para benefício dos demais. Aprendeu a comunicar sua
fé às pessoas simples e a viver assim para ela naquela cidade que se converteu
na sua, desempenhando sem cessar uma generosa atividade, que descreve com estas
palavras em um de seus belíssimos sermões: «Pregar continuamente, discutir,
repreender, edificar, estar à disposição de todos, é um ingente cargo e um
grande peso, um enorme cansaço» («Sermões» 339, 4). Mas ele carregou este peso,
compreendendo que precisamente deste modo podia estar mais próximo de Cristo.
Sua segunda conversão consistiu em compreender que se chega aos demais com
simplicidade e humildade.
A terceira conversão
Mas há uma última etapa no caminho de Agostinho,
uma terceira conversão: é a que o levou cada dia de sua vida a pedir perdão a
Deus. Ao início, havia pensado que uma vez batizado, na vida de comunhão com
Cristo, nos sacramentos na celebração da Eucaristia, chegaria à vida proposta
pelo Sermão da Montanha: a perfeição doada no batismo e reconfirmada pela
Eucaristia.
Na última parte de sua vida, ele compreendeu que o
que havia dito em suas primeiras pregações sobre o Sermão da Montanha – ou
seja, que nós, como cristãos, vivemos agora este ideal permanentemente – estava
errado. Só o próprio Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da
Montanha. Nós temos sempre necessidade de ser levados por Cristo, que nos lava
os pés, e de ser renovados por Ele. Temos necessidade de conversão permanente.
Até o final precisamos desta humildade que reconhece que somos pecadores em
caminho, até que o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida
eterna. Agostinho morreu com esta última atitude de humildade, vivida
dia-a-dia.
Esta atitude de humildade profunda ante o único
Senhor Jesus o introduziu na experiência de uma humildade também intelectual.
Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis, nos
últimos anos de sua vida, submeter a um lúcido exame crítico suas numerosas
obras. Surgiram assim as «Retractationes» («revisões»), que deste modo
introduzem seu pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e
santa daquela à qual chama simplesmente com o nome de Catholica, ou seja, a
Igreja. «Compreendi – escreve precisamente neste originalíssimo livro (I, 19
1-3) – que só um é verdadeiramente perfeito e que as palavras do Sermão da
Montanha só são realizadas totalmente por um só: no próprio Jesus Cristo. Toda
a Igreja, pelo contrário, todos nós, inclusive os apóstolos, temos de rezar
cada dia: ‘perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido’».
Convertido a Cristo, que é verdade e amor,
Agostinho o seguiu durante toda a vida e se converteu em um modelo para todo
ser humano, para todos nós na busca de Deus. Por este motivo, eu quis concluir
minha peregrinação a Pavia voltando a entregar espiritualmente à Igreja e ao
mundo, ante o túmulo deste grande enamorado de Deus, minha primeira encíclica,
Deus caritas est. Esta, de fato, tem uma grande dívida, sobretudo em sua
primeira parte, com o pensamento de Santo Agostinho.
Também hoje, como em sua época, a humanidade tem
necessidade de conhecer e sobretudo de viver esta realidade fundamental: Deus é
amor, e o encontro com ele é a única resposta às inquietudes do coração humano.
Um coração no qual vive a esperança – talvez ainda escura e inconsciente em
muitos de nossos contemporâneos –, para nós, os cristãos, abre já hoje ao
futuro, até o ponto de que São Paulo escreveu que «na esperança fomos salvos»
(Romanos, 8, 24).
Um escrito sumamente lindo de Agostinho define a
oração como expressão do desejo e afirma que Deus responde abrindo a ele o
nosso coração. Por nossa parte, temos de purificar nossos desejos e nossas
esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. Santo Agostinho, «In Ioannis», 4,
6). Só esta nos salva, abrindo-nos também aos demais. Rezemos, portanto, para
que em nossa vida nos seja concedido cada dia seguir o exemplo deste grande
convertido, encontrando como ele, em todo momento de nossa vida, o Senhor
Jesus, o único que nos salva, que nos purifica e nos dá a verdadeira alegria, a
verdadeira vida.
As Obras
É o padre da Igreja que deixou o maior número
de obras. Alguns dos escritos de Agostinho são
de importância capital, e não só para a história do cristianismo, mas também
para a formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro está na obra
«Confissões», sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã mais lidos ainda
hoje. Como vários padres da Igreja dos primeiros séculos, ainda que em uma
medida incomparavelmente mais ampla, também o bispo de Hipona exerceu uma
influência persistente, como se pode ver pela superabundante tradição
manuscrita de suas obras, que são extraordinariamente numerosas.
Ele mesmo as revisou anos antes de morrer nas
«Retratações» e pouco depois de sua morte foram cuidadosamente registradas no
«Indiculus» (Índice), acrescentado pelo fiel amigo Posídio à biografia de Santo
Agostinho, «Vita Augustini». A lista das obras de Agostinho foi realizada com o
objetivo explícito de salvaguardar sua memória, enquanto a invasão dos vândalos
se estendia por toda a África romana, e contabiliza 1.300 escritos numerados
por seu autor, junto com outros «que não podem ser numerados porque não colocou
nenhum número». Bispo de uma cidade próxima, Posídio ditava estas palavras
precisamente em Hipona, onde se havia refugiado e onde havia assistido à morte
de seu amigo, e quase seguramente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal
de Agostinho. Hoje sobreviveram mais de 300 cartas do bispo de Hipona, e quase
600 homilias, mas estas eram originalmente muitas mais, talvez inclusive entre
3.000 e 4.000, fruto de quatro décadas de pregação do antigo orador, que havia
decidido seguir Jesus e deixar de falar aos grandes da corte imperial para
dirigir-se à população simples de Hipona.
Em anos recentes, a descoberta de um grupo de
cartas e de algumas homilias enriqueceram o conhecimento deste grande padre da
Igreja. «Muitos livros – escreve Posídio – foram redigidos por ele e
publicados, muitas pregações foram pronunciadas na igreja, transcritas e
corrigidas, ora para refutar hereges, ora para interpretar as Sagradas
Escrituras para edificação dos santos filhos da Igreja. Estas obras – sublinha
o bispo amigo – são tão numerosas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade
de lê-las e aprender a conhecê-las.» («Vita Augustini», 18, 9)
Entre a produção literária de Agostinho, portanto,
mais de mil publicações divididas em escritos filosóficos, apologéticos,
doutrinais, morais, monásticos, exegéticos e contra os hereges, assim como as
cartas e homilias, destacam algumas obras excepcionais de grande importância
teológica e filosófica. Antes de tudo, devem-se recordar as «Confissões», antes
mencionadas, escritas em treze livros entre os anos 397 e 400 para louvor de
Deus. São uma espécie de autobiografia em forma de diálogo com Deus. Este gênero
literário reflete a vida de Santo Agostinho, que não estava fechada em si
mesma, perdida em mil coisas, mas vivida essencialmente como um diálogo com
Deus e, deste modo, uma vida com os demais.
Por si só, o título «Confissões» indica o caráter
específico desta biografia. Esta palavra «confissões», no latim cristão
desenvolvido pela tradição dos Salmos, tem dois significados, que se
entrecruzam. «Confissões» indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias
fraquezas, da miséria dos pecados; mas ao mesmo tempo, «confissões» significa
louvor a Deus, reconhecimento de Deus. Ver a própria miséria à luz de Deus se
converte em louvor de Deus e em ação de graças, pois Deus nos ama e nos aceita,
transforma-nos e nos eleva para si mesmo.
Menos difundidas, ainda que igualmente originais e
muito importantes são também as «Retratações» [Revisões], redigidas em dois
livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho, já idoso, faz uma
«revisão» («retractatio») de toda sua obra escrita, deixando assim um documento
literário singular e sumamente precioso, mas ao mesmo tempo um ensinamento de
sinceridade e de humildade intelectual.
«De civitate Dei» [A Cidade de Deus], obra
imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e
para a teologia cristã da história, foi escrita entre os anos 413 e 426, em 22
livros. A ocasião era o saque de Roma por parte dos godos no ano 410. Muitos
pagãos, ainda em vida, assim como muitos cristãos, haviam dito: Roma caiu,
agora o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a
presença das divindades pagãs, Roma era a «caput mundi», a grande capital, e
ninguém podia imaginar que cairia nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus
cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos
cristãos não protegia, não podia ser o Deus a quem se encomendar. A esta
objeção, que também tocava profundamente o coração dos cristãos, Santo
Agostinho responde com esta grandiosa obra, «De civitate Dei», declarando o que
deveriam esperar de Deus e o que não podiam esperar d’Ele, qual é a relação
entre a esfera política e a esfera da fé, da Igreja. Ainda hoje este livro é
uma fonte para definir bem a autêntica laicidade e a competência da Igreja, a
grande esperança que nos dá a fé.
Este grande livro é uma apresentação da história da
humanidade governada pela Providência divina, mas atualmente dividida em dois
amores. E este é o desígnio fundamental, sua interpretação da história, a luta
entre dois amores: o amor próprio, «até chegar ao menosprezo de Deus» e o amor
a Deus, «até chegar ao desprezo de si mesmo», («De civitate Dei», XIV, 28), à
plena liberdade e si mesmo através dos demais à luz de Deus. Este é talvez o
maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente.
Igualmente, é importante o «De Trinitate» [Sobre a
Trindade], obra em quinze livros sobre o núcleo principal da fé cristã, a fé no
Deus trinitário, escrita em dois momentos: entre os anos 399 e 412 os primeiros
doze livros, publicados sem que Agostinho soubesse, ele que os completou por
volta do ano 420 e revisou a obra completa. Nele reflete sobre o rosto de Deus
e trata de compreender este mistério de Deus que é único, o único criador do
mundo, de todos nós, e que, contudo, este Deus único é trinitário, um círculo
de amor. Ele procura compreender o mistério insondável: precisamente seu ser
trinitário, em três Pessoas, é a unidade mais real e profunda do único Deus.
O «De doctrina Christiana» [Sobre a doutrina
cristã] é uma autêntica introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em
definitivo, ao próprio cristianismo, que teve uma importância decisiva na
formação da cultura ocidental.
Apesar de toda sua humildade, Agostinho foi
certamente consciente de sua própria importância intelectual. Mas para ele era
mais importante levar a mensagem cristã aos simples que redigir grandes obras
de elevado nível teológico. Sua intenção mais profunda, que o guiou durante
toda sua vida, pode-se ver em uma carta escrita ao colega Evódio, na qual lhe
comunica a decisão de deixar de ditar por um tempo os livros do «De Trinitate»,
«pois são muito cansativos e creio que podem ser entendidos por poucos; são
mais necessários textos que esperamos que sejam úteis para muitos»
(«Epistulae», 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de
maneira compreensível para todos que escrever grandes obras teológicas.
A responsabilidade agudamente experimentada pela
divulgação da mensagem cristã se encontra na origem de escritos como o «De
catechizandis rudibus», uma teoria e também uma aplicação da catequese, ou o
«Psalmus contra partem Donati». Os donatistas eram o grande problema da África
e de Santo Agostinho, um cisma que queria ser africano. Diziam: a autêntica
cristandade é a africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o
grande bispo lutou durante toda sua vida, procurando convencer os donatistas de
que só na unidade inclusive a africanidade pode ser verdadeira. E para que o
entendessem os simples, que não podiam compreender o grande latim do orador,
disse: tenho de escrever inclusive com erros gramaticais, em um latim muito
simplificado. E o fez, sobretudo neste «Psalmus», uma espécie de simples poesia
contra os donatistas para ajudar todos a compreender que só na unidade da
Igreja se realiza realmente nossa relação com Deus e cresce a paz no mundo.
Nesta produção destinada a um grande público, tem
particular importância o grande número de suas homilias, com freqüência
improvisadas, transcritas por taquígrafos durante a pregação e imediatamente
postas em circulação. Entre estas, destacam as belíssimas «Enarrationes in
Psalmus», muito lidas na Idade Média. A publicação de milhares de homilias de
Agostinho, com freqüência sem controle do autor, explica tanto sua ampla
difusão como sua vitalidade. Imediatamente, as pregações do bispo de Hipona se
convertiam, pela fama do autor, em textos sumamente requeridos e eram
utilizados também pelos demais bispos e sacerdotes como modelos, adaptados
sempre a novos contextos.
Na tradição iconográfica, um afresco de Latrão que
se remonta ao século IV representa Santo Agostinho com um livro na mão, não só
para expressar sua produção literária, que tanta influência teve no pensamento
dos cristãos, mas também para expressar seu amor pelos livros, pela literatura
e pelo conhecimento da grande cultura precedente.
Ao morrer, não deixou nada, conta Posídio, mas
«recomendava sempre que se conservasse para as futuras gerações a biblioteca da
igreja com todos seus códices», sobretudo os de suas obras. Nestas, sublinha
Posídio, Agostinho está «sempre vivo» e é de utilidade para quem lê seus
escritos, ainda que, como ele diz, «creio que poderiam tirar mais proveito de
seu contato os que puderam vê-lo e escutá-lo quando falava pessoalmente na
igreja e sobretudo os que foram testemunhas de sua vida cotidiana entre as
pessoas» («Vita Augustini», 31). Sim, também para nós seria maravilhoso poder
senti-lo vivo. Mas ele está realmente vivo em seus escritos; está presente em
nós e deste modo vemos também a permanente vitalidade da fé pela qual ele
entregou toda a sua vida.
A Morte
(...) Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear
seu sucessor. Por este motivo, em 26 de setembro do ano 426, reuniu o povo na
Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis quem havia designado para
esta tarefa. Disse: «Nesta vida, todos somos mortais, mas o último dia desta
vida é sempre incerto para cada indivíduo. De qualquer forma, na infância se
espera chegar à adolescência; na adolescência, à juventude; na juventude, à
idade adulta; na idade adulta, à idade madura; na idade madura, à velhice. Não
se está seguro de que chegará, mas se espera. A velhice, pelo contrário, não
tem ante si outro período no qual poder esperar; sua própria duração é
incerta... Eu, por vontade de Deus, cheguei a esta cidade no vigor de minha
vida; mas agora minha juventude passou e já sou velho» (Carta 213, 1).
Nesse momento, Agostinho pronunciou o nome de seu
sucessor designado, o sacerdote Heráclio. A assembléia estourou em um aplauso
de aprovação, repetindo 23 vezes: «Graças sejam dadas a Deus!». Com outras
aclamações, os fiéis aprovaram também o que depois disse Agostinho sobre os
propósitos para seu futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo
mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Carta 213, 6).
De fato, seguiram quatro anos de extraordinária
atividade intelectual: concluiu obras importantes, empreendeu outras não menos
significativas, manteve debates públicos com os hereges – sempre buscava o
diálogo –, promoveu a paz nas províncias africanas insidiadas pelas tribos
bárbaras do sul.
Neste sentido, escreveu ao conde Dario, que foi à
África para superar as diferenças entre o conde Bonifácio e a corte imperial,
das que se aproveitavam as tribos dos vândalos para as suas invasões: «Título
de grande glória é precisamente o de adiar a guerra com a palavra, em vez de
matar os homens com a espada, e buscar ou manter a paz com a paz e não com a
guerra. Certamente, inclusive aqueles que combatem, se são bons, buscam sem
dúvida a paz, mas à custa de derramar sangue. Tu, pelo contrário, foste enviado
precisamente para impedir que se derrame o sangue» (Carta 229, 2).
Infelizmente foi defraudada a esperança de uma
pacificação dos territórios africanos: em maio do ano 429, os vândalos,
enviados à África como vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o Estreito de
Gibraltar e penetraram na Mauritânia. A invasão se estendeu rapidamente por
outras ricas províncias africanas. Em maio e em junho do ano 430, «os
destruidores do império romano», como Possídio qualifica esses bárbaros (Vida,
30, 1), rodeavam Hipona, assediando-a.
Na cidade, também se havia refugiado Bonifácio,
que, reconciliando-se tarde demais com a corte, tratava em vão de bloquear a
passagem dos invasores. O biógrafo Possídio descreve a dor de Agostinho: «Mais
que de costume, suas lágrimas eram seu pão dia e noite e, levando já ao final de
sua vida, ele se arrastava mais que os outros, na amargura e no luto, sua
velhice» (Vida, 28, 6). E explica: «Esse homem de Deus via as matanças e as
destruições das cidades; as casas destruídas nos campos e os habitantes
assassinados pelos inimigos ou expulsos; as igrejas sem sacerdotes ou
ministros, as virgens consagradas e os religiosos dispersos por toda parte;
entre eles, alguns haviam desfalecido ante as torturas, outros haviam sido
assassinados com a espada, outros eram prisioneiros, perdendo a integridade da
alma e do corpo e inclusive a fé, obrigados pelos inimigos a uma escravidão
dolorosa e longa» (ibidem, 28,8).
Ainda que era ancião e estava cansado, Agostinho
permaneceu em primeira linha, consolando a si mesmo e aos outros com a oração e
com a meditação dos misteriosos desígnios da Providência. Falava da «velhice do
mundo» – e era verdadeiramente velho este mundo romano –, falava desta velhice
como já o havia feito anos antes para consolar os refugiados procedentes da
Itália, quando no ano 410 os godos de Alarico invadiram a cidade de Roma.
Na velhice, dizia, abundam os ataques: tosse,
catarro, remelas, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é
sempre jovem. E lançava este convite: «não se deve negar-se a rejuvenescer com
Cristo, que te diz: ‘Não temas, tua juventude se renovará como a da águia’»
(cf.Sermão 81, 8). Por isso, o cristão não deve abater-se nas situações
difíceis, mas procurar ajudar o necessitado.
É o que o grande doutor sugere respondendo ao bispo
de Tiabe, Honorato, que lhe havia pedido se, sob a pressão das invasões
bárbaras, um bispo ou um sacerdote ou qualquer homem de Igreja podia fugir para
salvar a vida. «Quando o perigo é comum a todos, ou seja, para bispos, clérigos
e leigos, quem tem necessidade dos outros não deve ser abandonado por aqueles
de quem tem necessidade. Neste caso, todos devem refugiar-se em lugares
seguros; mas se alguns têm necessidade de ficar, que não sejam abandonados por
quem tem o dever de assisti-los com o ministério sagrado, de maneira que, ou se
salvam juntos ou juntos suportam as calamidades que o Pai de família quer que
sofram» (Carta 228, 2). E concluía: «Esta é a prova suprema da caridade»
(ibidem, 3). Como não reconhecer nestas palavras a heróica mensagem que tantos
sacerdotes, através dos séculos, acolheram e tornaram sua?
«No terceiro mês daquele assédio – narra – ficou
com febre: era sua última doença» (Vida, 29, 3). O santo ancião aproveitou
aquele momento, finalmente livre, para dedicar-se com mais intensidade à
oração. Costumava dizer que ninguém, bispo, religioso ou leigo, por mais
irrepreensível que possa parecer sua conduta, pode enfrentar a morte sem uma
adequada penitência. Por este motivo, repetia continuamente entre lágrimas os
salmos penitenciais, que tantas vezes havia recitado com o povo (cf. ibidem,
31, 2).
Quanto mais se agravava sua situação, mais
necessidade o bispo sentia de solidão e de oração: «Para não ser perturbado por
ninguém em seu recolhimento, aproximadamente dez dias antes de abandonar o
corpo, ele nos pediu que não deixássemos ninguém entrar em seu quarto, com
exceção dos momentos nos quais os médicos vinham para vê-lo ou quando lhe
levavam a comida. Sua vontade foi cumprida fielmente e durante todo esse tempo
ele aguardava em oração» (ibidem, 31, 3). Faleceu em 28 de agosto do ano 430:
seu grande coração finalmente descansou em Deus.
«Por ocasião da inumação de seu corpo – informa
Possídio –, ofereceu-se a Deus o sacrifício, ao qual assistimos, e depois ele
foi sepultado» (Vida,31, 5). Seu corpo, em data incerta, foi trasladado à
Cardenha e, no ano 725, a Pavia, à basílica de São Pedro no Céu de Ouro, onde
descansa hoje. Seu primeiro biógrafo dá este juízo conclusivo: «Deixou à Igreja
um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de
pessoas dedicadas à continência e à obediência a seus superiores, junto com as
bibliotecas que continham os livros e discursos dele e de outros santos, pelos
que se conhece qual foi, por graça de Deus, seu mérito e sua grandeza na
Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo» (Possídio, Vida, 31, 8).
É um juízo ao qual podemos associar-nos: em seus
escritos também nós o «encontramos vivo».
Em Santo Agostinho que nos fala – fala a mim em
seus escritos –, vemos a atualidade permanente de sua fé, da fé que vem de
Cristo, do Verbo Eterno encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos
ver que esta fé não é de ontem, ainda que tenha sido pregada ontem; é sempre
atual, porque realmente Cristo é ontem, hoje e sempre. Ele é o Caminho, a
Verdade e a Vida. Deste modo, Santo Agostinho nos anima a confiar neste Cristo
sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.
Fé e Razão
João Paulo II lhe dedicou, em 1986, ou seja, no
décimo sexto centenário de sua conversão, um longo e denso documento, a carta
apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto como
«uma ação de graças a Deus pelo dom que fez à Igreja, e mediante ela à
humanidade inteira, graças àquela admirável conversão». (Augustinum
Hipponensem, 1).
Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderemos
meditar sobre o que é esta conversão: é algo definitivo, decisivo, mas a
decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda nossa vida.
Desde criança, havia aprendido de sua mãe, Mônica,
a fé católica. Mas sendo adolescente, havia abandonado esta fé porque já não
conseguia ver sua racionalidade e não queria uma religião que não fosse
expressão da razão, ou seja, da verdade. Sua sede de verdade era radical e o
levou a afastar-se da fé católica. Mas sua radicalidade era tal que não podia
contentar-se com filosofias que não chegassem à própria verdade, que não
chegassem até Deus. E a um Deus que não fosse só uma hipótese última cosmológica,
mas que fosse o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra em nossa
própria vida. Deste modo, todo o itinerário intelectual e espiritual de Santo
Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão,
tema não só para homens crentes, mas para todo homem que busca a verdade, tema
central para o equilíbrio e o destino de todo o ser humano.
Estas duas dimensões, fé e razão, não devem
separar-se nem contrapor-se, mas devem estar sempre unidas. Como escreveu
Agostinho após sua conversão, fé e razão são «as forças que nos levam a
conhecer» (Contra Acadêmicos, III 20, 43). Neste sentido, continuam sendo
famosas suas duas fórmulas (Sermões, 43, 9) com as quais expressa esta síntese
coerente entre fé e razão: crede ut intelligas («crê para compreender») – crer
abre o caminho para cruzar a porta da verdade –, mas também e de maneira
inseparável, intellige ut credas («compreende para crer»), perscrutar a verdade
para poder encontrar a Deus e crer.
As duas afirmações de Agostinho manifestam com
eficácia e profundidade a síntese deste problema, em que a Igreja Católica vê
seu caminho manifestado. Historicamente, esta síntese foi-se formando já antes
da vinda de Cristo, no encontro entre a fé judaica e o pensamento grego no
judaísmo helênico. Sucessivamente, na história esta síntese foi retomada e
desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão
significa sobretudo que Deus não está longe: não está longe de nossa razão, de
nossa vida; está perto de todo ser humano, perto de nosso coração e de nossa
razão, se realmente nos colocamos a caminho.
Precisamente esta proximidade de Deus do homem foi
experimentada com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus
no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode reconhecer-se e
descobrir-se na própria intimidade: não há que sair para fora – afirma o
convertido –, «volte sobre ti mesmo. A verdade habita no homem interior. E se
encontras que sua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda ao
fazê-lo assim que transcendes uma alma que raciocina. Assim, pois, dirige-te
ali onde se acende a própria luz da razão» (De vera religione, 39, 72). Ele
mesmo sublinha em uma afirmação famosíssima do início das Confissões,
autobiografia espiritual escrita em louvor de Deus: «Nos fizeste, Senhor, para
ti, e nosso coração está inquieto, até que descanse em ti» (I, 1,1).
A distância de Deus equivale, portanto, à distância
de si mesmos. «Porque tu – reconhece Agostinho (Confissões III, 6, 11) –
estavas dentro de mim, mais interior que o mais íntimo meu e mais elevado que o
mais supremo meu», interior intimo meo et superior summo meo; até o ponto de
que, em outra passagem, recordando o tempo precedente a sua conversão,
acrescenta: «Tu estavas, certamente, diante de mim, mas eu me havia afastado de
mim mesmo e não me encontrava» (Confissões V, 2, 2). Precisamente porque
Agostinho viveu em primeira pessoa este itinerário intelectual e espiritual,
soube apresentá-lo em suas obras com tanta proximidade, profundidade e sabedoria,
reconhecendo em outras duas famosas passagens das Confissões(IV, 4, 9 e 14, 22)
que o homem é «um grande enigma» (magna quaestio) e «um grande abismo» (grande
profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e preenche. Isto é
importante: quem está longe de Deus também está longe de si mesmo, alienado de
si mesmo, e só pode encontrar a si se se encontra com Deus. Deste modo,
consegue chegar a seu verdadeiro eu, sua verdadeira identidade.
O ser humano, sublinha depois Agostinho no De
civitate Dei (XIII, 27), é sociável por natureza mas anti-sociável por vício, e
é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade, e «caminho
universal da liberdade e da salvação», como repetiu meu predecessor João Paulo
II (Augustinum Hipponensem, 21): foi deste caminho, que nunca faltou ao gênero
humano, segue afirmando Agostinho nessa mesma obra, «ninguém foi libertado
nunca, ninguém é libertado, ninguém será libertado» (De civitate Dei, X, 32,
2). Como único mediador da salvação, Cristo é cabeça da Igreja e está unido
misticamente a ela de modo que Agostinho afirma: «Nos convertemos em Cristo. De
fato, se ele é a cabeça, nós somos seus membros, o homem total é ele e nós» (In
Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).
Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja, segundo a
visão de Agostinho, está portanto ligada intimamente ao conceito de Corpo de
Cristo, fundamentada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida
sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá seu Corpo e nos
transforma em seu Corpo. Portanto, é fundamental que a Igreja, povo de Deus, em
sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente
integrada em Cristo, que, segundo afirma Agostinho em uma página maravilhosa,
«reza por nós, reza em nós, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos
portanto nele nossa voz e nós nele a sua» (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).
Na conclusão da carta apostólica Augustinum
Hipponensem, João Paulo II quis perguntar ao próprio santo o que podia dizer
aos homens de hoje e responde sobretudo com as palavras que Agostinho confiou
em uma carta ditada pouco depois de sua conversão: «Me parece que se deve levar
aos homens a esperança de encontrar a verdade» (Epistulae, 1,1); essa verdade
que é Cristo, Deus verdadeiro, a quem se dirige uma das orações mais lindas e
famosas das Confissões (X, 27, 38): «Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão
nova, tarde te amei! Estavas dentro de mim e eu estava fora, e aí te procurava.
Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas
comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que
não existiriam se em ti não existissem. Mas Tu me chamaste, clamaste e rompeste
a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste e curaste a minha cegueira.
Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Tu me tocaste, e
agora estou ardendo no desejo de tua paz».
Deste modo, Agostinho encontrou a Deus e durante
toda a sua vida fez sua experiência até o ponto de que esta realidade – que é
antes de tudo o encontro com uma Pessoa, Jesus – mudou sua vida, como muda a de
todos que, homens e mulheres, em todo tempo, têm a graça de encontrar-se com
Ele. Peçamos ao Senhor que nos dê esta graça e nos faça encontrar assim sua
paz.