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terça-feira

PADRE CÍCERO E A FÉ DO POVO


1. Juazeiro como lugar privilegiado da religião popular.
Juazeiro do Norte é um caso único. A religião popular desenvolveu-se em Juazeiro de modo independente do clero. A política eclesiástica desde a Separação  da Igreja e do Estado consistiu em entregar os lugares de romaria a congregações religiosas. Isto não aconteceu em Juazeiro por razões óbvias A romaria a Juazeiro foi condenada pela Igreja e o clero sempre manifestou a maior hostilidade ao que acontecia em Juazeiro. A condenação de padre Cícero trazia consigo a condenação da romaria Com isso não houve interferência do clero.
A romaria a Juazeiro nunca manifestou fenômenos de heresia ou de cisma. Todos os romeiros sempre foram bons católicos, respeitaram a autoridade religiosa, mas desconheciam as sutilezas do direito canônico. O fato de não estar sob o controle de padres o de religiosos não prejudicou em nada a fidelidade a Igreja católica.
É verdade que não puderam receber os sacramentos tantas vezes como teria sido se a romaria estivesse nas mãos de uma congregação. Mas para as massas populares os sacramentos são atos de devoção parecidos com outros e da mesma eficácia. Eles não estudaram o tratado De gratia. A limitada possibilidade de receber os sacramentos tem pouca repercussão na fé deles. Os sacramentos pertencem mais ao ritual das Santas Missões.
Com certeza, nem todos os romeiros viviam como santos. No meio deles havia de tudo, e ainda há de tudo.  São o reflexo da sociedade nordestina. Entre eles podem encontrar-se todos os vícios característicos da cristandade: embriaguez, violência, luxuria vagabundagem, etc. Mas os que seguiam Jesus nas suas andanças eram assim. Não eram os fiéis observantes da lei, os devotos do templo. Havia de tudo. Jesus não selecionou e até afirmou que haveria prostitutas e ladrões no reino de Deus mais adiante do que os fariseus, perfeitos observantes de todas as leis. Precisamos justamente evitar todo tipo de seleção moral, para ser fiéis a Jesus e não semelhantes aos fariseus. Se tivesse havido mais sacerdotes, eles teriam falado contra os pecadores. Mas não convém que os sacerdotes se transformem em policiais, sobretudo numa romaria que é sinal de esperança e de acolhida para todos.
Houve sociólogos que acharam em Juazeiro fenômenos de messianismo. Mas algo semelhante foi muito divulgado em toda a Igreja católica no Brasil quando nasceu a República. A República proclamou a separação da Igreja e do Estado. Muitos acharam que era um sinal do fim do mundo. Também o próprio padre Cícero pensava o mesmo, assim como muitos dos seus colegas. Mas, depois de alguns anos, todos se acostumaram a República e nada aconteceu. Todo o messianismo desapareceu e ninguém mais entre os católicos anunciou o fim do mundo como iminente.
Alguns sociólogos denunciaram também os milagres. De fato, o povo acredita em milagres e sente a presença de Deus na sua vida por meio de muitos milagres. Aliás, essa crença ainda persevera em pessoas que já passaram pela escolarização, inclusive entre muitos intelectuais.
Porém, a crença nos milagres faz parte da herança católica. O próprio Vaticano exige milagres para a beatificação ou a canonização.  A crença nos milagres forma parte da tradição católica e não constitui nenhuma anomalia dos romeiros de padre Cícero. Essa crença é tão forte no povo, que os próprios neo-pentecostais fazem muitos milagres; porque sabem que é o que povo espera.
A romaria de Juazeiro permite que observemos o que é a religião popular em estado quase puro, o que nos permite compreender melhor essa religião e apreciá-la. Uma das lições é esta: a grande distância entre a religião realmente vivida pelo povo simples e a religião oficial pregada pelo clero. É verdade que, no passado pelo menos, e ainda hoje em parte, o próprio clero está dividido entre duas religiões: há a religião que os padres ensinam porque é a profissão deles, e a religião que praticam na sua própria vida e que pode ser parecida com a religião popular que aprenderam na família. A fé dos padres expressa mais o que a sua mãe lhes ensinou do que a teologia que  aprenderam no seminário. Mas evidentemente eles sabiam que Juazeiro era lugar proibido e não quiseram desobedecer.

2. O que representa padre Cícero


Padre Cícero é uma presença do sagrado. O sagrado, isto é, a força de vida que fundou o mundo e o dirige e pode estar identificada na natureza, no céu, no sol, na lua, nas estrelas, na terra, em plantas, em animais, ou em seres humanos    ( reis, profetas, sacerdotes, sábios). Mas o sagrado pode estar somente num Deus único como no caso de um monoteísmo rígido, como no judaísmo. Dessa tradição nasceram as religiões cristã e muçulmana. No entanto no próprio judaísmo certas pessoas humanas foram tratadas como reflexo de Deus, por exemplo, os profetas. No próprio Islã o fundador, Maomé recebe um culto especial.
Sabemos que no Novo Testamento todos os seres humanos são sagrados porque o Espírito está em todos. Mas isto não é conhecido e constitui uma novidade tão grande que somente uma revelação pode dá-lo a conhecer.
A mensagem evangélica é pouco conhecida e não era assunto a ser tratado nas Santas Missões. A antiga tradição da humanidade revive no cristianismo na forma de veneração dos Santos. Estes são pessoas excepcionalmente sagradas, que são como uma presença de Deus. No passado foram os mártires, e depois certos monges, missionários, bispos que o povo canonizou.
Com o decorrer dos tempos a própria instituição católica reconheceu os Santos, e veio o momento em que o Papa se reservou a capacidade e o direito de proclamar os Santos,  o que parece uma pouco abusivo. Pois, dessa maneira, entram nas canonizações motivações políticas, inclusive de política eclesiástica.. A canonização torna-se instrumento de poder. Apesar disso , há Santos não incluídos na lista oficial, mas  que o povo reconhece como Santos , por exemplo dom Oscar Romero. Entre eles está padre Cícero de Juazeiro.
Claro está que Deus é o sagrado absoluto e total. Está presente em tudo. Mas essa universalidade é também uma limitação para a humanidade. Com ela, Deus se torna muito distante. Ele se aproxima, manifestando a sua presença de modo mais concreto em realidades de experiência imediata : entidades materiais, animais, ou seres humanos. Jesus é a própria revelação de Deus, mas ele também já é tão universal que precisa de presenças mais imediatas. Todas as religiões têm esses entes intermediários entre Deus e os seres humanos: são os orixás, os anjos e, para os cristãos, os Santos de modo privilegiado. Os Santos muitas vezes já são Santos quando ainda vivem nesta terra. Há Santos que, ainda estando na terra, fazem milagres.
Os Santos cristãos têm algumas características que lhes são próprias. Pois, eles representam um Deus diferente. O Deus de Jesus não é um deus temível, que domina pelo seu poder, que é exigente, que exige um culto, sacrifícios, obediência a preceitos rigorosos. O Deus de Jesus é justiça para os oprimidos, perdão para os pecadores, compaixão pelos doentes e todos os excluídos, condenação para os opressores, e não pede nada para si mesmo porque não precisa de nada.
Por isso, os Santos cristãos são diferentes. Pois, eles refletem o rosto do Deus de Jesus. Fazem transparecer de maneira mais clara esse Deus. Eles querem a justiça para com os pobres e podem enfrentar por isso a perseguição e até a morte. São compassivos para com os doentes, os humilhados, os perseguidos. São acolhedores para os pecadores, duros com os opressores. São solidários com os pobres.
Além disso, os Santos são também presença de Deus porque fazem milagres. Manifestam que o poder de Deus é para aliviar os sofrimentos, para curar os doentes, para defender os oprimidos. Deus nada quer para si mesmo. Não precisa de nada e não quer nada para si mesmo. Quer apenas expressar a sua justiça parta com os pobres e a compaixão por todos os que sofrem.
Os Santos não são rivais de Deus, como às vezes pensaram os Reformados. Não atraem o culto para si próprios. O que o povo procura e descobre neles, não são as pessoas deles, mas o rosto de Deus. O culto dirige-se a Deus de quem eles são a presença transparente.
Se um cristão busca prestígio, honras, promoção, não poderá ser Santo, nem fará milagres. O Santo é completamente desinteressado, como um servidor de Deus que o deixa transparecer nos seus atos e nas suas palavras. Se uma pessoa mostra que busca um interesse próprio, jamais o povo o reconhecerá como Santo.
Por isso, pode haver muita ambigüidade nas espiritualidades que estimulam o desejo de ser Santo: “quero ser Santo!”. O que significa isso realmente na psicologia da pessoa? Há pessoas muito religiosas, mas tão rígidas que ninguém as reconhece como Santos, apesar de que praticam heroicamente todos os atos devocionais que apareceram na história da Igreja.
Ora, os caracteres dos Santos são justamente o que os romeiros descobrem em padre Cícero. Para os romeiros ele é uma transparência de Deus, uma manifestação visível e muito próxima deles. Juazeiro é lugar sagrado por ali está padre Cícero.
Padre Cícero é acolhedor, acolhe os pecadores, os fracos, Atende aos doentes, Tem compaixão pela vida dos pobres e os sofrimentos deles. É bom sublinhar essas virtudes cristãs, quando se fala de padre Cícero.
Pode ser que padre Cícero chegue a ser canonizado. Muito bem! Padre Cícero não ganhará nada com isso e também os romeiros não vão ganhar nada. Quem vai ganhar com isso será o próprio Papa. O Papa vai mostrar o seu poder e vai ganhar a estima dos romeiros porque, por fim, descobriu o que eles já sabiam, que padre Cícero é Santo, e não era necessário que alguém o dissesse. Se for canonizado, todo o mundo vai alegrar-se porque agora o Papa se junta a nós para venerar padre Cícero.
Os romeiros voltam para casa com mais fé e esperança, com mais coragem e mais confiança para enfrentar a dura vida de cada dia. Entrou neles uma nova força, e, por isso, no próximo ano, irão de novo para a fonte de vida, porque a luta nesta terra é de muitos sofrimentos, e como suportar essa vida? O Santo ajuda. Ele faz milagres e o primeiro milagre é a fé e a esperança do povo dos romeiros.
Todos levam lembranças, imagens, santinhos, imagens de gesso, folhetos, que são dentro das suas casas uma presença de Juazeiro. Dom Helder ainda conheceu padre Cícero no final da vida dele e ficou muito edificado. Contava que um dia entrou da casa de taipa de uma pobre velhinha Dentro da casa viu que havia 4 santinhos de padre Cícero nas paredes. Então  dom Helder disse a mulher “Estou vendo que a senhora gosta muito de padre Cícero.”   A velhinha respondeu : “Gosto muito, sim senhor.” E dom Helder perguntou : “Porque a senhora gosta tanto de padre Cícero ?” A mulher disse : “Olha, dom Heldi, eu vou dizer porque é o senhor que pergunta.  O padre Cícero é o próprio Sagrado Coração de Jesus”.
Nessa resposta estava tudo dito. Jesus ainda está longe e precisa aparecer em figuras humanas. Padre Cícero era justamente essa transparência de Jesus, ou seja, de Deus.
Os historiadores podem contestar a santidade de padre Cícero por causa da atividade política dele, por causa das suas relações com caciques locais e por causa do dinheiro que recebia. Mas tudo ia aos pobres. Tudo o que ele deixou aos salesianos no seu testamento era, na idéia dele, um serviço aos pobres, porque os salesianos estavam a serviço dos pobres.
De qualquer maneira, o povo não se interessa muito por isso. Sabia e sabe que padre Cícero vivia a serviço dos pobres e era isso o que importava. Os critérios dos pobres não são os critérios dos historiadores que não vivem a vida dos pobres.

3. O futuro de Juazeiro


Juazeiro está ligado a pobreza do Nordeste. Os romeiros são os pobres do Nordeste, basicamente os que moram em cima do rio São Francisco desde Alagoas até o Ceará. Há duas categorias: os trabalhadores da cana na zona da mata, e os pobres agricultores ou artesãos do sertão ou do agreste.
 Se desaparecesse a pobreza, o que aconteceria? Com certeza tudo mudaria. Os romeiros tradicionais deixariam de existir. Os seus filhos poderiam continuar um pouco, pelo menos alguns deles. Mas não viriam como os pobres que pedem ajuda a padre Cícero. A romaria poderia continuar, mas ela mudaria. Uma população mais rica daria um aspeto mais urbanizado aos lugares de culto. Haveria imensos estacionamentos para carros e viriam ônibus de luxo. Eventualmente teriam que aumentar o aeroporto. Já que a doença não  acabaria, ainda poderiam vir muitas pessoas pedindo a cura, assim como em Lourdes e Fátima.
O que fazer nesse caso? Juazeiro poderia ser um centro de retiros espirituais ou de estudos da religião. Todos desejamos que acabe a pobreza no Nordeste. Infelizmente as políticas dos governos sucessivos não permitem prever que a pobreza será suprimida em breve. Enquanto isso não acontece e ainda aparecem em Juazeiro multidões de pobres, é melhor evitar introduzir atividades que seriam de classe media.
Também se fizesse agora, quando ainda há multidões de pobres, não seria muito interessante promover instituições próprias da classe média porque as pessoas que viriam já não seriam mais os pobres, porque os burgueses introduziriam temas e formas de cultura burguesa, perturbando a religião dos pobres. A cultura burguesa invade todos os espaços e expulsa os pobres.
Neste momento é preciso fazer todo o possível par evitar a entrada de movimentos burgueses, porque assumiriam a direção de tudo. Os burgueses são inconscientes. Quando pessoas do mundo popular e pessoas da classe média se encontram, a classe média sempre se impõe. Por enquanto, é preciso preservar o caráter popular de tal modo que os pobres se sintam a vontade. Os pobres não têm tantos lugares que sejam deles!
Outro perigo é que a romaria poderia transformar-se num lugar turístico. Assim aconteceu com as romarias na Terra Santa, e muitos outros lugares ou em Roma, mesmo em Assis, e em muitos outros lugares da Europa ou da Ásia. Ainda haveria alguns fiéis que iriam a Juazeiro com mentalidade de romeiros, para manter uma tradição religiosa. Mas eles não poderiam conservar o ambiente.
O que os turistas poderiam pedir a padre Cícero? Iriam por curiosidade, para tirar fotos ou fazer um DVD. Iriam visitar Juazeiro para ver como no jardim zoológico uma espécie em via de desaparecimento: os romeiros nordestinos. Hoje em dia com o crescimento mundial do turismo é preciso inventar novos lugares turísticos e a religião é um bom negócio para o turismo. Os ricos pagam muito para conhecer os monges budistas na Tailândia. Quantos vão ao Oriente visitar santuários hinduístas ou vestígios das religiões antigas, visitam sem nenhum sentimento religioso. Dizem que, a cada ano, 50 milhões de turistas visitam a catedral de Paris. Nenhum deles vai para rezar. 
Com certeza, os comerciantes de Juazeiro estariam encantados se Juazeiro se transformasse num lugar turístico. Os turistas gastariam mais do que os romeiros. Mas é preciso resistir a todas as pressões e impedir as incursões de agências de turismo, Precisa evitar qualquer publicidade sobre Juazeiro. Os pobres não precisam de publicidade. Quem aproveitaria seriam as agências de turismo.

4. Juazeiro e a pastoral

Atualmente, o perigo mais imediato é a campanha organizada pela Igreja Universal do Reino de Deus. Eles mandam pessoas para afastar os pobres do padre Cícero. Condenam as romarias como atos de idolatria, entregam folhetos, conversam, espiam os ônibus que chegam. Muitos romeiros são surpreendidos e não sabem como reagir. Com certeza, não podemos criar um ambiente de pânico com uma contrapropaganda muito barulhenta. Mas poderia haver pessoas preparadas para interpelar esses evangélicos que atrapalham para que desanimem e desistam de realizar essa forma de apostolado.
Os evangélicos acusam os católicos de substituir Jesus por padre Cícero. Os católicos, dizem, colocam Padre Cícero no lugar de Jesus. Esta acusação é capaz de perturbar muita gente. Pode ser conveniente afirmar mais a presença de Jesus nos lugares santos de Juazeiro. Poderia ser com cartazes dizendo: “Jesus está aqui!”. Ou poderiam espalhar cartazes com palavras de Jesus no evangelho. Por exemplo, “Jesus diz: Felizes os pobres porque o Reino de Deus é deles!”. Mostrar mais a fé de padre Cícero em Jesus e como padre Cícero anunciou Jesus e dedicou a sua vida a Jesus. A Igreja universal é realmente um perigo porque sabe comunicar com os pobres.
A tradição Católica no Nordeste foi marcada, sobretudo pelas Santas Missões dos Capuchinos e dos Redentoristas. As missões tinham por finalidade a conversão moral. As missões lutavam contra os pecados profundamente enraizados na sociedade nordestina. Naquele tempo até os grandes pecadores estavam presentes nas Santas Missões. Parece que as Santas Missões de hoje mudaram um pouco. Em todo caso uma romaria é diferente de uma Santa Missão.
Em Juazeiro o centro da pregação é naturalmente o próprio padre Cícero. Não precisa insistir demais nos milagres, porque isso todos sabem. Mas insistir nas virtudes evangélicas de padre Cícero. A mensagem do evangelho não é muito conhecida. Aqui há uma oportunidade para insistir nela. As virtudes de padre são as virtudes de Jesus. Jesus perdoa, Jesus prega a não violência, e vive no meio dos pobres. Tem compaixão pelos doentes e os sofredores. Padre Cícero era assim.
É bom multiplicar e distribuir santinhos com textos que mostram a semelhança entre o evangelho e a vida de padre Cícero, e como padre Cícero foi o discípulo que Jesus queria. Juazeiro e a sua romaria ainda têm muito futuro se não perdem o seu caráter popular. A Igreja católica atual está muito integrada na cultura ocidental que é de classe média. Aí está o perigo. Quem não é pobre e visita Juazeiro, que esconda a sua própria cultura para não mudar o ambiente!

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