Arquivo do blog

sábado

A Igreja Católica Apostólica Romana e o uso das Imagens

Introdução

            Muitas pessoas têm a maior curiosidade para saber como é de fato a face da Imagem da Virgem de Aparecida. Faço chegar uma foto bem de perto da Imagem original da Padroeira do Brasil, aproveitando a oportunidade para falarmos do uso das imagens na Igreja. Este é um assunto tão polêmico, onde pessoas que se dizem conhecedoras da Palavra, nos acusam do pecado da idolatria. Nós cristãos católicos não adoramos imagens! A Igreja católica Apostólica Romana condena veementemente toda idolatria porque ela é pecado abominável aos olhos de Deus.
                   
Idolatria e Igreja Católica

            Idolatria, segundo o Dicionário Aurélio é “culto prestado a ídolos, amor ou paixão exagerada, excessiva”. Para um bom entendedor saberá que não é o uso de imagens no culto divino, mas prestar a uma criatura, o culto de adoração que devemos exclusivamente a Deus. É por isso que São Paulo nos adverte que a avareza é uma idolatria (cf. Col 3,5), uma vez que o avarento coloca o dinheiro no lugar de Deus, como o valor supremo de sua vida.
            Ora, o que há de mais importante no universo é Deus, pois é Ele quem o criou e sustenta no ser. Todo o cosmos depende de Deus para existir. Logo, também em nossa hierarquia de valores, Deus deve ocupar o primeiríssimo lugar, como valor supremo. Todos os demais valores e ideais devem submeter-se a Ele. Quando colocamos outro bem, valor ou ideal no lugar que é exclusivo de Deus, destoamos da ordem do cosmos e caímos na idolatria. Afinal de contas, todo o universo canta a glória de Deus (cf. Sl 18,2). Quem, portanto, não coloca a Deus como valor supremo de sua vida, não apenas nega a adoração exclusivamente a Ele devida, como também prejudica a si próprio. Por isso Deus ordenou no primeiro mandamento de sua Lei: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (cf Ex 20,2-3). Do mesmo modo Nosso Senhor Jesus Cristo, quando repeliu o demônio que o tentava, repetiu o preceito: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás” (cf Mt 4,10).
            Todavia, se devemos adorar somente a Deus, isso não significa que não devemos honrar e invocar seus santos e anjos. O mesmo Deus que ordenou que adorássemos só a Ele, também mandou honrar os pais (cf Ex 20,12/ Dt 5, 16/ Mt 15 6), as autoridades públicas (cf. Rom 13), àqueles que pregaram a Palavra de Deus (cf Hb 13, 7-9) os nossos superiores e as pessoas mais idosas (cf Lv 19, 32). Prestar honra a essas pessoas, simples criaturas, em nada prejudica a adoração devida exclusivamente ao Criador.
            Se devemos honrar os governantes deste mundo, quanto mais os anjos, de cujo ministério Deus se serve para governar não só a Igreja, como também todas as coisas criadas(cf Ap 8, 4). Foi por isso que Abraão prostrou-se diante dos três anjos que lhe apareceram em forma humana, para anunciar o nascimento de seu filho Isaac (cf. Gen 18,2).

O culto aos anjos e santos na Bíblia

  
          A Sagrada Escritura orienta a Igreja para que ensine que desde o início até a morte a vida humana é cercada pela proteção e intercessão do anjo da guarda: “Eis que eu enviarei o meu anjo, que vá adiante de ti, e te guarde pelo caminho” (cf Ex 23,20). Pela invisível assistência dos anjos, somos quotidianamente preservados dos maiores perigos, tanto da alma como do corpo. Com a maior boa vontade, patrocinam a nossa salvação e oferecem a Deus as nossas orações e nossas lágrimas. O Senhor Jesus advertiu que não se devia dar escândalo aos pequeninos, porque “seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de seu Pai, que está nos céus” (cf. Mt 18,10). Se os anjos contemplam a Deus sem cessar, por que não seriam merecedores de grande honra?
            Também o culto aos santos, longe de diminuir a glória de Deus, lhe dá o maior incremento possível. Canta a Virgem Maria no Magníficat que “o Poderoso fez em mim maravilhas” (cf Lc 1,49). Quando honramos retamente um santo, proclamamos as maravilhas que a Graça de Deus (Jesus Cristo) operou na vida dele. Como se diz no Prefácio dos Santos, “na assembléia dos santos vós sois glorificado e, coroando seus méritos, exaltai vossos próprios dons”. A santidade que veneramos nos homens santos é dom do único e três vezes Santo. Honrando os santos, glorificamos a Deus que os santificou.
            Deus é um Pai amoroso, a quem muito agrada ver seus filhos intercedendo uns pelos outros. Ademais, quis associar suas criaturas na obtenção e distribuição de suas graças. Muitas coisas Deus não as concede, se não houver a intervenção de um intercessor. Para que os amigos de Jó fossem perdoados, por exemplo, foi necessária a sua intercessão: “O meu servo Jó orará por vós; admitirei propício a sua intercessão para que se não vos impute esta estultícia, porque vós não falastes de mim o que era reto” (Jó 42,8). Também não é sinal de falta de fé em Deus, recorrermos à intercessão dos santos em nossas orações. O centurião, por exemplo, recorreu à intercessão dos anciãos dos judeus (cf. Lc 7,3) para que Jesus curasse seu servo, mas nem por isso o Senhor deixou de enaltecer sua fé com os maiores elogios: “Em verdade vos digo que não encontrei tanta fé em Israel” (cf Lc 7,9).
            A Igreja Católica confessa que só temos um único Mediador na pessoa de Jesus Cristo Nosso Senhor (cf 1 Tm 2, 5). Só Ele nos reconciliou com o Pai pelo oferecimento de seu preciosíssimo sangue, entrando uma só vez no Santo dos Santos, consumou uma Redenção eterna (cf. Heb 9,11-12) e não cessa de interceder por nós (cf. Heb 7,25). Todavia, o fato de termos um único Mediador de Redenção, não significa que não podemos ter junto dele mediadores que clama a Ele por nós. É isto que vemos em Apocalipse oito (v. 4), onde os anjos recolhem as orações dos santos, ao pé do Altar do Cordeiro (Jesus Cristo) e entrega a Deus.
            Se recorrer à intercessão dos santos prejudicasse a glória devida unicamente a Cristo Mediador, o Apóstolo Paulo não pediria, com tanta insistência, que seus irmãos rezassem por ele: “Rogo-vos, pois, irmãos, por Nosso Senhor Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, que me ajudeis com as vossas orações por mim a Deus” (cf Rm 15,30). “Se vós nos ajudardes também, orando por nós…” (cf 2 Cor 1,11). Se as orações dos que vivem nesta terra são úteis e eficazes para que sejamos ouvidos por Deus, quem dirá as orações daqueles que já estão em glória, contemplando a Deus face a face (cf Ap 19, 1-10/ 20, 4-6/ 21, 9-27).

Os restos mortais dos santos manifestam a glória de Deus

          
  Sobre os santos e os objetos sagrados encontramos no livro dos Atos dos Apóstolos, alguns relatos afirmando que “Deus fazia milagres não vulgares por mão de Paulo, de tal modo que até, sendo aplicados aos enfermos os lenços e aventais que tinham tocado no seu corpo, não só saiam deles as doenças, mas também os espíritos malignos se retiravam” (cf At 19,11-12). E também que “traziam os doentes para as ruas e punham-nos em leitos e esteiras, a fim de que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos a sua sombra algum deles” (cf At 5,15). Se as vestes, os lenços e a sombra dos santos, já antes de sua morte, removiam doenças e expulsavam demônios, quem será louco de dizer que Deus não possa fazer os mesmos milagres por intermédio deles, depois de mortos, já que estão vivos, segundo a Bíblia, na presença de Deus (cf Lc 16, 22)? Mesmo depois de mortos aos olhos humanos, eles continuam vivos e os seus restos mortais continuam cheios da graça de Deus, porque os santos foram templos vivos do Espírito Santo de Deus (cf 1 Cor 3, 16-17). Sobre isto as Sagradas Escrituras dão testemunho, quando se narra o episódio do cadáver lançado na sepultura do profeta Eliseu: “Logo que o cadáver tocou os ossos de Eliseu, o homem ressuscitou e levantou-se sobre os seus pés” (cf 2Rs 13,21).
            Nos primeiros séculos do cristianismo a Igreja Católica já venerava os restos mortais dos mártires e conservava-os em lugar de honra, atribuindo a eles muitos prodígios e milagres.
            Todavia, se devemos honrar e venerar os santos e anjos como fiéis servidores do Senhor, é gravíssimo pecado colocá-los no lugar de Deus, prestando-lhes culto de adoração. Este abuso é estranho a Doutrina Católica.

Imagens permitidas da Bíblia

            A Sagrada Escritura apresenta, muitas vezes, o mistério de Deus através de imagens: e a primeira imagem quem a fez foi o próprio Deus, ao criar o ser humano à sua imagem e semelhança (cf Gn 1,27; 2,7). O mesmo Deus manda Moisés fazer dois querubins de ouro e colocá-los por cima da Arca da Aliança (cf Ex 25,18-20). Manda Salomão enfeitar o templo de Jerusalém com imagens de querubins, palmas, flores, bois e leões (cf 1Reis 6,23-25 e 7,29). O Novo Testamento também apresenta o mistério de Deus através de imagens: a imagem de Jesus como cordeiro digno de receber a força e o louvor (cf Ap 5,12). Quando do batismo de Jesus, o Espírito Santo é apresentado em forma de pomba (cf Mt 3,16) e, no dia de Pentecostes, com línguas de fogo (cf Atos 2,1-3).

Jesus ensina através das imagens

            Jesus ensinava através de imagens: “Eu sou o bom pastor” ( cf Jo 10,14). Os cristãos à luz do Evangelho vão representar Jesus desenhando um Bom Pastor com a ovelha nos ombros. Olhando esta imagem, eles não adoravam um pastor, mas pensavam na ternura de Deus que, em Jesus, busca a ovelha perdida. Representar algo por imagem ou símbolo era comum na Igreja primitiva, sobretudo em tempos de perseguição. Sabemos pela história que por muito tempo, as pinturas dos santos e de cenas bíblicas nas Igrejas foram o único livro que os cristãos mais simples puderam ler e entender a manifestação de Deus.

Imagens proibidas na Bíblia: idolatria

            A Bíblia, então, não proíbe o uso das imagens? Sim, proíbe quando sua finalidade é servir à idolatria (cf Ex 20,2-5). Em várias passagens bíblicas se repete esta proibição de não adorar outros deuses e nem fazer deuses fundidos (cf Ex 34,14.17/ Sl 116, 4-8/ Dt 7,5).
            Vimos no início de nossa reflexão o que é a idolatria, tendo como base esse conceito entenderemos que "ídolo" designa imagem feita para ser adorada como deus, como faziam os pagãos com suas divindades. Para os judeus, as imagens dos deuses são os próprios deuses pagãos. Os povos vizinhos dos judeus acreditavam em muitos deuses e faziam imagens deles. Geralmente, estes deuses, criados pelo próprio homem, serviam de apoio ao sistema injusto e cruel que maltratava o povo, em especial os pobres. Em Israel não se podia fazer imagem de Deus, não se podia imaginar como Deus era, pois Ele é invisível e ninguém nunca o tinha visto. Do Deus verdadeiro não se faz imagens, porque todas as imagens são inadequadas para Javé.

As Imagens no culto litúrgico da Igreja
                 
            Muitos cristãos católicos foram martirizados aos milhares porque se recusaram a adorar imagens de deuses falsos. Eles estudaram a Bíblia com atenção e jamais tiravam esses textos que proíbem imagens de seu contexto. Comparando-os com outros textos bíblicos, ficaram convencidos de que Deus proíbe imagens de deuses falsos, adoração de ídolos que representem falsos valores, os quais induzem ao pecado. É o que faziam os povos vizinhos de Israel, como vimos acima. No II Concílio de Nicéia (ano 787), defendeu-se a veneração das imagens (pintura e escultura) de santos pelos cristãos e o uso de símbolos nas celebrações litúrgicas porque a Igreja viu que elas são importantes para a compreensão da mensagem do Evangelho e para a nossa união com o mistério de Deus. O mesmo fez o Concilio Vaticano II, mantendo o culto às imagens conforme a tradição (LG 67), contanto que seja em número comedido e na ordem devida (SC 125).
            A primeira coisa que devemos fazer é procurar entender a diferença de culto. Existem três diferenças importantíssimas e uma não se confunde com as outras: 1ª) Culto de latria (grego: "latreuo") quer dizer adorar – É o culto reservado somente a Deus; 2ª) Culto de dulia (grego: "douleuo") quer dizer honrar – está reservado a São José e aos santos; Culto de hiperdulia (grego: “hyper”, acima de; “douleuo”, honra) ou acima do culto de honra, sem atingir o culto de adoração – este culto está reservado somente a Maria mãe de Jesus.
            Alguns protestantes protestam dizendo que toda a "inclinação", "genuflexão", etc, é um ato eminentemente de "adoração", só devido à Deus. Já demonstramos, com o trecho do Gênesis, que isso não procede. Todavia, para deixar mais claro o problema, devemos recordar que o culto de "latria" (ou de "dulia") é um ato interno da alma. A adoração é, eminentemente, um ato interior do homem, que pode se manifestar de formas variadas, conforme as circunstâncias e as disposições de alma de cada um.
            Os atos exteriores - como genuflexão, inclinação, etc -, são classificados tendo em vista o "objeto" a que se destinam. Se é aos santos que se presta a inclinação, é claro que se trata de um culto de dulia. Se é a Deus, o culto é de latria. Aliás, a inclinação pode ser até um ato de agressão, como no caso dos soldados de Pilatos que, zombando de Nosso Senhor, "lhe cuspiram no rosto e, prostrando-se de joelhos, o adoraram" (cf Mc 15, 19). Sendo assim, a objeção protestante, dessa forma, cai por terra. Ou eles teriam que afirmar que havia uma "adoração" por parte dos soldados de Pilatos, o que é absurdo! Eles simulavam uma adoração (ou veneração ao "Rei dos Judeus), através de atos exteriores, mas seu desejo era de zombaria.

A Igreja Católica não desobedece a Bíblia quando reza com as imagens


           É verdade, no Antigo Testamento Deus proibiu que fossem feitas as imagens : “Não farás para ti imagem alguma do que há em cima no céu, e do que há embaixo na terra, nem do que há nas águas debaixo da terra” (cf Ex 20,4). Precisamos compreender a razão desta proibição e este entendimento, creio que já foi nos dado nesta leitura.
            Mas, vamos esclarecer mais: o mesmo Deus que proibiu confeccionar as imagens dos ídolos, ordenou que se fizessem “outras” imagens (cf Ex 25, 18). Tem o mesmo valor que os ídolos, as imagens que o Senhor mandou Moisés confeccionar? Claro que não tem o mesmo valor ou sentido, pois a finalidade delas eram para convidar o povo a rezar diante para da Arca da Aliança e respeita-la! Observem que tanto as imagens dos anjos, como a Arca, são objetos, frutos da produção humana. Porém com uma diferença, eram objetos santificados por Deus para manifestar a sua glória (cf Num 21, 9).

O povo de Deus vivia no meio dos idólatras

            Os hebreus viviam no meio de povos idólatras, cujos deuses eram concebidos como tendo formas visíveis, muitas vezes com figura de animais. Para ressaltar a transcendência e a espiritualidade do Deus verdadeiro, este preceito proibia que os israelitas representassem a divindade com imagens. Com efeito, Deus em si mesmo não está ao alcance da nossa vista: é um ser puramente espiritual, não tem corpo, não cabe nos limites do espaço, nem pode ser representado por nenhuma figura. “Não vistes figura alguma no dia em que o Senhor vos falou sobre o Horeb do meio do fogo” (cf Dt 4,15).

Jesus revelou a face escondida de Deus e a Igreja Católica passou a usar as imagens sagradas

            Com a encarnação do Filho de Deus foi superada a proibição de se fazer imagens que representasse Deus, pois ele mesmo se fez Carne, revelou seu Rosto e habitou entre nós (cf Jo 1,14), Ele se tornou visível a nós como homem. Invisível em sua divindade, Deus se tornou visível na humanidade de nossa carne. Como diz o Prefácio do Natal do Senhor, reconhecendo a Jesus como Deus visível a nossos olhos, aprendemos a amar nele a divindade que não vemos.
            A diferença do cristianismo com todas as outras as religiões é que o nosso Deus se fez homem. O centro da Fé cristã é o mistério de Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro. Perfeitamente homem, sem deixar de ser Deus. Mesmo depois da Ressurreição, o Cristo manteve a sua natureza humana na sua integridade e perfeição, como fez questão de sublinhar aos Apóstolos: “Olhai para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo; apalpai, e vede, porque um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que eu tenho” (cf Lc 24,39). Até hoje, no Céu, dentro do peito de Jesus bate incessantemente um coração de carne, em suas veias corre sangue verdadeiramente humano.
            Entendamos todos que Jesus Cristo é “a imagem visível de Deus invisível” (cf. Col 1,15). Assim sendo, toda vez que honramos uma imagem sagrada, damos testemunho da nossa Fé no mistério da Encarnação do Filho de Deus. Portanto, quem renega as imagens, de certo modo atenta contra a fé nesse mistério. Rejeitar as imagens sagradas é voltar à Antiga Lei, quando Deus ainda não tinha se feito homem. Quem defende isso, para ser coerente, deve também praticar a circuncisão e guardar o sábado, como é prescrito na Lei de Moisés. Para essas pessoas, o Cristo não veio ainda.
            Portanto, beijar uma imagem ou acender diante dela uma vela não são práticas idolátricas, mas atos de piedade. Somente pessoas ignorantes, que não compreendem os dogmas da Fé em seu verdadeiro sentido, podem ter a audácia de chamar de idolatria essas práticas.
            Quem honra uma imagem, honra a pessoa que nela está representada. Aquilo que a Bíblia nos ensina com palavras, as imagens nos anunciam com figuras visíveis. A imagem representa, ou seja, torna presente a pessoa simbolizada. Todavia, não podemos confundir essa presença, que é meramente uma presença simbólica, com a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Na imagem Jesus está presente como em um símbolo, na Eucaristia como realidade substancial. Por isso, diante do Santíssimo Sacramento fazemos genuflexão e o adoramos, porque ali Ele está presente com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade.

O verdadeiro sentido das imagens que a Igreja Católica venera


            O sentido das imagens católicas está na linha da serpente de bronze que Deus mandou Moisés esculpir (cf Num 21, 8-9), segundo a explicação dada em Sabedoria 16,7: ”e quem se voltava para ele (o sinal da serpente), era salvo, não em virtude do que via, mas graças a Ti, ó Salvador de todos”.  

José Wilson Fabrício da Silva, crl
(Cônego Regular lateranense)
















BIBLIOGRAFIA:

BÍBLIA de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2012.

BÍBLIA DE ESTUDO, Palavras Chave Hebraico e Grego, 3Ed., Rio de Janeiro, CPAD, 2012.

INTRODUÇÃO GERAL SOBRE O MISSAL ROMANO, 4ª ed., Paulinas, São Paulo, 2011.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, São Paulo, Loyola, 1993.                                                                           
JOÃO PAULO II, Duodecim Saeculum. Carta Apostólica sobre a Veneração das Imagens, 1987. Petrópolis: Vozes, 1988.

PONTIFICAL ROMANO. Ritual da dedicação de igreja e de altar, 1977. São Paulo: Paulinas, 1984.

SCOMPARIM  A. F., A iconografia na Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2008.  

quarta-feira

Santo Agostinho de Hipona segundo o Papa Bento XVI

Vamos falar do maior padre da Igreja Latina, Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de elevadíssima inteligência e de incansável entrega pastoral. Este grande santo e doutor da Igreja é conhecido, ao menos de nome, inclusive por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, por ter deixado uma marca profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo.



            Por sua singular relevância, Santo Agostinho teve uma influência enorme e poderia afirmar-se, por uma parte, que todos os caminhos da literatura cristã latina levam a Hipona (hoje Anaba, na costa da Argélia), localidade na qual era bispo e, por outra, que desta cidade da África romana, na qual Agostinho foi bispo desde o ano 395 até 430, partem muitos outros caminhos do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
            Poucas vezes uma civilização encontrou um espírito tão grande, capaz de acolher os valores e de exaltar sua intrínseca riqueza, inventando idéias e formas das quais se alimentariam as gerações posteriores, tal como sublinhou também Paulo VI: «Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui em sua obra e dessa se derivam correntes de pensamento que penetram toda a tradição doutrinal dos séculos posteriores» (AAS, 62, 1970, p. 426).
            Agostinho é também o padre da Igreja que deixou o maior número de obras. Seu biógrafo, Posídio, diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tanto em vida. Em um próximo encontro falaremos destas obras. Hoje, nossa atenção se concentrará em sua vida, que pôde reconstruir-se com seus escritos, e em particular com as «Confissões», sua extraordinária biografia espiritual escrita para louvor de Deus, sua obra mais famosa.
            As «Confissões» constituem, precisamente por sua atenção à interioridade e à psicologia, um modelo único na literatura ocidental, e não só ocidental, inclusive a não-religiosa, ate a modernidade.
            Esta atenção pela vida espiritual, pelo mistério do eu, pelo mistério de Deus que se esconde no eu, é algo extraordinário, sem precedentes, e permanece para sempre como um «cume» espiritual.
            Mas voltamos à sua vida. Agostinho nasceu em Tagaste, na província de Numídia, na África romana, em 13 de novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois chegou a ser catecúmeno, e de Mônica, fervorosa cristã.
            Esta mulher apaixonada, venerada como santa, exerceu em seu filho uma enorme influência e o educou na fé cristã. Agostinho havia recebido também o sal, como sinal da acolhida no catecumenato. E sempre se fascinou pela figura de Jesus Cristo; e mais, diz que sempre amou Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece também hoje com muitos jovens.
            Agostinho tinha também um irmão, Navigio, e uma irmã, da qual desconhecemos o nome e que, após ficar viúva, converteu-se em superiora de um mosteiro feminino.
            O rapaz, de agudíssima inteligência, recebeu uma boa educação, ainda que nem sempre foi estudante exemplar. De qualquer forma, aprendeu bem a Gramática, primeiro em sua cidade natal e depois em Madaura e, a partir do ano 370, Retórica, em Cartago, capital da África romana: chegou a dominar perfeitamente o Latim, mas não alcançou o mesmo nível em grego, nem aprendeu o púnico, língua que seus antepassados falavam.
            Em Cartago, Agostinho leu pela primeira vez o «Hortensius», obra de Cícero que depois se perderia e que se marca no início de seu caminho rumo à conversão. O texto ciceroniano despertou nele o amor pela sabedoria, como escrevia já sendo bispo nas «Confissões»: «Aquele livro mudou meus sentimentos», até o ponto de que «de repente todas as minhas vãs esperanças envelheceram ante meus olhos e comecei a acender-me em um incrível ardor do coração por uma sabedoria imortal» (III, 4, 7).
            Mas, dado que estava convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efetivamente a verdade, e dado que nesse livro apaixonante faltava esse nome, ao acabar de lê-lo começou a ler a Escritura, a Bíblia. Ficou decepcionado. Não só porque o estilo da tradução ao Latim da Sagrada Escritura era deficiente, mas também porque o mesmo conteúdo não lhe parecia satisfatório.
            Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas, ele não encontrava a altura da filosofia, o esplendor da busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e buscava uma religião que respondesse a seu desejo de verdade e também a seu desejo de aproximar-se de Jesus.
            Desta maneira, caiu na rede dos maniqueístas, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da história humana. A moral dualista também atraía Santo Agostinho, pois comportava uma moral muito elevada para os eleitos: e para quem, como ele, aderia à mesma era possível uma vida muito mais adequada à situação da época, especialmente se era jovem.
            Tornou-se, portanto, maniqueísta, convencido nesse momento de que havia encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E tirou uma vantagem concreta para sua vida: a adesão aos maniqueístas abria fáceis perspectivas de carreira. Aderir a essa religião, que contava com muitas personalidades influentes, permitia-lhe continuar sua relação com uma mulher e continuar com sua carreira.
            Desta mulher teve um filho, Adeodato, a quem amava muito, sumamente inteligente, que depois estaria presente em sua preparação para o batismo no lago de Como, participando nesses «Diálogos» que Santo Agostinho nos deixou. Infelizmente, o rapaz faleceu prematuramente.
            Sendo professor de Gramática, por volta dos vinte anos, em sua cidade natal, logo regressou a Cartago, onde se converteu em um brilhante e famoso professor de Retórica. Com o passar do tempo, contudo, Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueístas, que o decepcionaram precisamente desde o ponto de vista intelectual, pois eram incapazes de resolver suas dúvidas, e se transferiu a Roma, depois a Milão, onde residia na corte imperial e onde havia obtido um cargo de prestígio, por recomendação do prefeito de Roma, o pagão Símaco, que era hostil ao bispo de Milão, Santo Ambrósio.
            Em Milão, Agostinho se acostumou a escutar, em um primeiro momento com o objetivo de enriquecer sua bagagem retórica, as belíssimas pregações do bispo Ambrósio, que havia sido representante do imperador para a Itália do Norte. O retórico africano ficou fascinado pela palavra do grande prelado milanês, não só por sua retórica. O conteúdo foi tocando cada vez mais seu coração.
            O grande problema do Antigo Testamento, a falta de beleza retórica, de nível filosófico, resolveu-se com as pregações de Santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Deste modo, encontrou a chave para compreender a beleza, a profundidade inclusive filosófica do Antigo Testamento e compreendeu toda a unidade do mistério de Cristo na história, assim como a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo, Verbo eterno, que se fez carne.
            Depois, Agostinho percebeu que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia neoplatônica do bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era mais jovem, em seu primeiro contato com os textos bíblicos, haviam lhe parecido insuperáveis.
            Agostinho continuou a leitura dos escritos dos filósofos com a da Escritura, e sobretudo das cartas de São Paulo. A conversão ao cristianismo, em 15 de agosto de 386, marcou portanto o final de um longo e agitado caminho interior, do qual continuaremos falando em outra catequese. O africano se mudou para o campo, ao norte de Milão, ao longo de Como, com sua mãe, Mônica, o filho Adeodato, e um pequeno grupo de amigos, para preparar-se para o batismo. Deste modo, aos 32 anos, Agostinho foi batizado por Ambrósio em 24 de abril de 387, durante a vigília pascoal na catedral de Milão.
            Após o batismo, Agostinho decidiu regressar à África com seus amigos, com a ideia de levar vida em comum, de caráter monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, enquanto esperava para embarcar, sua mãe se enfermou e pouco depois morreu, destroçando o coração do filho.
            Após regressar finalmente à sua pátria, o convertido se estabeleceu em Hipona para fundar um mosteiro. Nessa cidade da costa africana, apesar de resistir-se à ideia, foi ordenado presbítero no ano 391 e começou com alguns companheiros a vida monástica na qual estava pensando há algum tempo, dividindo seu tempo entre a oração, o estudo e a pregação.
            Queria estar ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que o chamado de Deus significava ser pastor entre os demais e assim oferecer o dom da verdade aos outros. Em Hipona, quatro anos depois, no ano 395, foi ordenado bispo.
            Continuando com o aprofundamento no estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho se converteu em um bispo exemplar, com um incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana a seus fiéis, ajudava os pobres e os órfãos, atendia a formação do clero e a organização dos mosteiros femininos e masculinos.
            Em pouco tempo, o antigo professor de Retórica se converteu em um dos expoentes mais importantes do cristianismo dessa época: sumamente ativo no governo de sua diocese, com notáveis implicações também civis, em seus mais de 35 anos de episcopado, o bispo de Hipona exerceu uma ampla influência na guia da Igreja Católica da África romana e mais em geral no cristianismo de sua época, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras, como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que colocavam em perigo a fé cristã no único Deus e rico em misericórdia.
            Agostinho se confiou a Deus cada dia, até o final de sua vida: contraiu febre, enquanto a cidade de Hipona se encontrava assediada há quase três meses por vândalos invasores. O bispo, conta seu amigo Posídio na «Vita Augustini», pediu que transcrevessem com letra grande os salmos penitenciais «e pediu que colassem as folhas na parede, de maneira que desde a cama em sua enfermidade pudesse ver e ler, e chorava sem interrupção lágrimas quentes» (31, 2). Assim passaram os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu em 28 de agosto do ano 430, sem ter completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros a suas obras, à sua mensagem e à sua experiência interior.

A Conversão


            Após vermos sua vida, (...) hoje quero (...) recordar sua experiência interior, que fez dele um dos maiores convertidos da história cristã. A esta experiência dediquei em particular minha reflexão durante a peregrinação que fiz a Pavia, no ano passado, para venerar os restos mortais deste Padre da Igreja. Deste modo quis expressar a homenagem de toda a Igreja Católica, e ao mesmo tempo tornar visível minha pessoal devoção e reconhecimento por uma figura à qual me sinto sumamente unido pela importância que teve em minha vida de teólogo, de sacerdote e de pastor.
            Ainda hoje é possível recorrer às vivências de Santo Agostinho, graças sobretudo às «Confissões», escritas para o louvor de Deus, que constituem a origem de uma das formas literárias mais específicas do Ocidente, a autobiografia, ou seja, a expressão do conhecimento de si mesmo. Quem quer que se aproxime deste extraordinário e fascinante livro, ainda hoje sumamente lido, percebe facilmente que a conversão de Agostinho não foi repentina nem aconteceu plenamente desde o início, mas que pode ser definida mais como um autêntico caminho, que continua sendo um modelo para cada um de nós.
            Este itinerário culminou certamente com a conversão e depois com o batismo, mas não se concluiu com aquela vigília pascal do ano 387, quando em Milão o professor de retórica africano foi batizado pelo bispo Ambrósio. O caminho de conversão de Agostinho continuou humildemente até o final de sua vida, até o ponto de que se pode verdadeiramente dizer que suas diferentes etapas – podemos distinguir facilmente três – são uma única e grande conversão.

A primeira conversão

            Santo Agostinho foi um buscador apaixonado da verdade: desde o início e depois durante toda a sua vida. A primeira etapa em seu caminho de conversão se realizou precisamente na aproximação progressiva ao cristianismo. Na realidade, ele havia recebido da mãe Mônica, com a qual sempre esteve muito unido, uma educação cristã e, apesar de que havia vivido nos anos de juventude uma vida desordenada, sempre sentiu uma profunda atração por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo sublinha (cf. «Confissões», III, 4, 8).
            Mas a filosofia, sobretudo a de orientação platônica, também havia contribuído para aproximá-lo de Cristo, manifestando-lhe a existência do Logos, a razão criadora. Os livros dos filósofos lhe indicavam que existe a razão, da qual procede todo o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia tão afastado. Só a leitura das cartas de São Paulo, na fé da Igreja Católica, revelou-lhe plenamente a verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho em uma das páginas mais famosas das «Confissões»: conta que, no tormento de suas reflexões, retirado em um jardim, escutou de repente uma voz infantil que repetia uma canção, nunca antes escutada: «tolle,, lege, tolle, lege», «toma, lê, toma, lê» (VIII, 12, 29). Então se lembrou da conversão de Antônio, pai do monaquismo, e com atenção voltou a tomar um livro de São Paulo que pouco antes tinha entre as mãos: abriu-o e o olhar se fixou na passagem da carta aos Romanos na qual o apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14).
            Ele havia compreendido que essa palavra, naquele momento, dirigia-se pessoalmente a ele, procedia de Deus através do apóstolo e lhe indicava o que ele tinha de fazer nesse momento. Deste modo sentiu como desapareciam as trevas da dúvida e era libertado para entregar-se totalmente a Cristo: «Havias convertido a ti meu ser», comenta («Confissões», VIII, 12, 30). Esta foi a primeira e decisiva conversão.
            O professor de retórica africano chegou a esta etapa fundamental em seu longo caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a buscar a Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo o fez compreender que Deus não estava tão afastado como parecia. Ele se havia feito próximo de nós, convertendo-se em um de nós. Neste sentido, a fé em Cristo levou a cumprimento a longa busca de Santo Agostinho no caminho da verdade. Só um Deus que se fez «tocável», um de nós, era, em última instância, um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual se podia viver e com o qual se podia viver.

A segunda conversão

            É um caminho que deve ser percorrido com valentia e ao mesmo tempo com humildade, abertos a uma purificação permanente, algo que cada um de nós sempre precisa. Mas o caminho de Agostinho não havia concluído com aquela vigília pascal do ano 387, como dissemos. Ao regressar à África, fundou um pequeno mosteiro e se retirou nele, junto a uns poucos amigos, para dedicar-se à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho de sua vida. Agora estava chamado a viver totalmente para a verdade, com a verdade, na amizade de Cristo, que é a verdade. Um lindo sonho que durou três anos, até que, apesar dele, foi consagrado sacerdote em Hipona e destinado a servir aos fiéis. Certamente continuou vivendo com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isso era muito difícil para ele, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os demais, e não simplesmente para sua contemplação privada, podia realmente viver com Cristo e por Cristo.
            Deste modo, renunciando a uma vida consagrada só à meditação, Agostinho aprendeu, às vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto de sua inteligência para benefício dos demais. Aprendeu a comunicar sua fé às pessoas simples e a viver assim para ela naquela cidade que se converteu na sua, desempenhando sem cessar uma generosa atividade, que descreve com estas palavras em um de seus belíssimos sermões: «Pregar continuamente, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos, é um ingente cargo e um grande peso, um enorme cansaço» («Sermões» 339, 4). Mas ele carregou este peso, compreendendo que precisamente deste modo podia estar mais próximo de Cristo. Sua segunda conversão consistiu em compreender que se chega aos demais com simplicidade e humildade.

A terceira conversão

            Mas há uma última etapa no caminho de Agostinho, uma terceira conversão: é a que o levou cada dia de sua vida a pedir perdão a Deus. Ao início, havia pensado que uma vez batizado, na vida de comunhão com Cristo, nos sacramentos na celebração da Eucaristia, chegaria à vida proposta pelo Sermão da Montanha: a perfeição doada no batismo e reconfirmada pela Eucaristia.
            Na última parte de sua vida, ele compreendeu que o que havia dito em suas primeiras pregações sobre o Sermão da Montanha – ou seja, que nós, como cristãos, vivemos agora este ideal permanentemente – estava errado. Só o próprio Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da Montanha. Nós temos sempre necessidade de ser levados por Cristo, que nos lava os pés, e de ser renovados por Ele. Temos necessidade de conversão permanente. Até o final precisamos desta humildade que reconhece que somos pecadores em caminho, até que o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida eterna. Agostinho morreu com esta última atitude de humildade, vivida dia-a-dia.
            Esta atitude de humildade profunda ante o único Senhor Jesus o introduziu na experiência de uma humildade também intelectual. Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis, nos últimos anos de sua vida, submeter a um lúcido exame crítico suas numerosas obras. Surgiram assim as «Retractationes» («revisões»), que deste modo introduzem seu pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa daquela à qual chama simplesmente com o nome de Catholica, ou seja, a Igreja. «Compreendi – escreve precisamente neste originalíssimo livro (I, 19 1-3) – que só um é verdadeiramente perfeito e que as palavras do Sermão da Montanha só são realizadas totalmente por um só: no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, pelo contrário, todos nós, inclusive os apóstolos, temos de rezar cada dia: ‘perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’».
            Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho o seguiu durante toda a vida e se converteu em um modelo para todo ser humano, para todos nós na busca de Deus. Por este motivo, eu quis concluir minha peregrinação a Pavia voltando a entregar espiritualmente à Igreja e ao mundo, ante o túmulo deste grande enamorado de Deus, minha primeira encíclica, Deus caritas est. Esta, de fato, tem uma grande dívida, sobretudo em sua primeira parte, com o pensamento de Santo Agostinho.
            Também hoje, como em sua época, a humanidade tem necessidade de conhecer e sobretudo de viver esta realidade fundamental: Deus é amor, e o encontro com ele é a única resposta às inquietudes do coração humano. Um coração no qual vive a esperança – talvez ainda escura e inconsciente em muitos de nossos contemporâneos –, para nós, os cristãos, abre já hoje ao futuro, até o ponto de que São Paulo escreveu que «na esperança fomos salvos» (Romanos, 8, 24). À esperança quis dedicar minha segunda encíclica, Spe Salvi, que também contraiu uma grande dívida com Agostinho e seu encontro com Deus.
            Um escrito sumamente lindo de Agostinho define a oração como expressão do desejo e afirma que Deus responde abrindo a ele o nosso coração. Por nossa parte, temos de purificar nossos desejos e nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. Santo Agostinho, «In Ioannis», 4, 6). Só esta nos salva, abrindo-nos também aos demais. Rezemos, portanto, para que em nossa vida nos seja concedido cada dia seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele, em todo momento de nossa vida, o Senhor Jesus, o único que nos salva, que nos purifica e nos dá a verdadeira alegria, a verdadeira vida.

As Obras
            (...) É o padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e destas quero falar brevemente. Alguns dos escritos de Agostinho são de importância capital, e não só para a história do cristianismo, mas também para a formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro está na obra «Confissões», sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã mais lidos ainda hoje. Como vários padres da Igreja dos primeiros séculos, ainda que em uma medida incomparavelmente mais ampla, também o bispo de Hipona exerceu uma influência persistente, como se pode ver pela superabundante tradição manuscrita de suas obras, que são extraordinariamente numerosas.
            Ele mesmo as revisou anos antes de morrer nas «Retratações» e pouco depois de sua morte foram cuidadosamente registradas no «Indiculus» (Índice), acrescentado pelo fiel amigo Posídio à biografia de Santo Agostinho, «Vita Augustini». A lista das obras de Agostinho foi realizada com o objetivo explícito de salvaguardar sua memória, enquanto a invasão dos vândalos se estendia por toda a África romana, e contabiliza 1.300 escritos numerados por seu autor, junto com outros «que não podem ser numerados porque não colocou nenhum número». Bispo de uma cidade próxima, Posídio ditava estas palavras precisamente em Hipona, onde se havia refugiado e onde havia assistido à morte de seu amigo, e quase seguramente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje sobreviveram mais de 300 cartas do bispo de Hipona, e quase 600 homilias, mas estas eram originalmente muitas mais, talvez inclusive entre 3.000 e 4.000, fruto de quatro décadas de pregação do antigo orador, que havia decidido seguir Jesus e deixar de falar aos grandes da corte imperial para dirigir-se à população simples de Hipona.
            Em anos recentes, a descoberta de um grupo de cartas e de algumas homilias enriqueceram o conhecimento deste grande padre da Igreja. «Muitos livros – escreve Posídio – foram redigidos por ele e publicados, muitas pregações foram pronunciadas na igreja, transcritas e corrigidas, ora para refutar hereges, ora para interpretar as Sagradas Escrituras para edificação dos santos filhos da Igreja. Estas obras – sublinha o bispo amigo – são tão numerosas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de lê-las e aprender a conhecê-las.» («Vita Augustini», 18, 9)
            Entre a produção literária de Agostinho, portanto, mais de mil publicações divididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos, exegéticos e contra os hereges, assim como as cartas e homilias, destacam algumas obras excepcionais de grande importância teológica e filosófica. Antes de tudo, devem-se recordar as «Confissões», antes mencionadas, escritas em treze livros entre os anos 397 e 400 para louvor de Deus. São uma espécie de autobiografia em forma de diálogo com Deus. Este gênero literário reflete a vida de Santo Agostinho, que não estava fechada em si mesma, perdida em mil coisas, mas vivida essencialmente como um diálogo com Deus e, deste modo, uma vida com os demais.
            Por si só, o título «Confissões» indica o caráter específico desta biografia. Esta palavra «confissões», no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos, tem dois significados, que se entrecruzam. «Confissões» indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias fraquezas, da miséria dos pecados; mas ao mesmo tempo, «confissões» significa louvor a Deus, reconhecimento de Deus. Ver a própria miséria à luz de Deus se converte em louvor de Deus e em ação de graças, pois Deus nos ama e nos aceita, transforma-nos e nos eleva para si mesmo.
            Ele mesmo escreveu sobre estas «Confissões», que tiveram grande êxito já na vida de Santo Agostinho: «Exerceram sobre mim um grande impacto enquanto as escrevia e o continuam exercendo quando volto a lê-las. Há muitos irmãos que gostam destas obras («Retratações», II, 6): e tenho de reconhecer que eu também sou um destes ‘irmãos’». E graças às «Confissões», podemos acompanhar, passo a passo, o caminho interior desse homem extraordinário e apaixonado por Deus.
            Menos difundidas, ainda que igualmente originais e muito importantes são também as «Retratações» [Revisões], redigidas em dois livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho, já idoso, faz uma «revisão» («retractatio») de toda sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e sumamente precioso, mas ao mesmo tempo um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.
            «De civitate Dei» [A Cidade de Deus], obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história, foi escrita entre os anos 413 e 426, em 22 livros. A ocasião era o saque de Roma por parte dos godos no ano 410. Muitos pagãos, ainda em vida, assim como muitos cristãos, haviam dito: Roma caiu, agora o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades pagãs, Roma era a «caput mundi», a grande capital, e ninguém podia imaginar que cairia nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos não protegia, não podia ser o Deus a quem se encomendar. A esta objeção, que também tocava profundamente o coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta grandiosa obra, «De civitate Dei», declarando o que deveriam esperar de Deus e o que não podiam esperar d’Ele, qual é a relação entre a esfera política e a esfera da fé, da Igreja. Ainda hoje este livro é uma fonte para definir bem a autêntica laicidade e a competência da Igreja, a grande esperança que nos dá a fé.
            Este grande livro é uma apresentação da história da humanidade governada pela Providência divina, mas atualmente dividida em dois amores. E este é o desígnio fundamental, sua interpretação da história, a luta entre dois amores: o amor próprio, «até chegar ao menosprezo de Deus» e o amor a Deus, «até chegar ao desprezo de si mesmo», («De civitate Dei», XIV, 28), à plena liberdade e si mesmo através dos demais à luz de Deus. Este é talvez o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente.
            Igualmente, é importante o «De Trinitate» [Sobre a Trindade], obra em quinze livros sobre o núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois momentos: entre os anos 399 e 412 os primeiros doze livros, publicados sem que Agostinho soubesse, ele que os completou por volta do ano 420 e revisou a obra completa. Nele reflete sobre o rosto de Deus e trata de compreender este mistério de Deus que é único, o único criador do mundo, de todos nós, e que, contudo, este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Ele procura compreender o mistério insondável: precisamente seu ser trinitário, em três Pessoas, é a unidade mais real e profunda do único Deus.
            O «De doctrina Christiana» [Sobre a doutrina cristã] é uma autêntica introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em definitivo, ao próprio cristianismo, que teve uma importância decisiva na formação da cultura ocidental.
            Apesar de toda sua humildade, Agostinho foi certamente consciente de sua própria importância intelectual. Mas para ele era mais importante levar a mensagem cristã aos simples que redigir grandes obras de elevado nível teológico. Sua intenção mais profunda, que o guiou durante toda sua vida, pode-se ver em uma carta escrita ao colega Evódio, na qual lhe comunica a decisão de deixar de ditar por um tempo os livros do «De Trinitate», «pois são muito cansativos e creio que podem ser entendidos por poucos; são mais necessários textos que esperamos que sejam úteis para muitos» («Epistulae», 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de maneira compreensível para todos que escrever grandes obras teológicas.
            A responsabilidade agudamente experimentada pela divulgação da mensagem cristã se encontra na origem de escritos como o «De catechizandis rudibus», uma teoria e também uma aplicação da catequese, ou o «Psalmus contra partem Donati». Os donatistas eram o grande problema da África e de Santo Agostinho, um cisma que queria ser africano. Diziam: a autêntica cristandade é a africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande bispo lutou durante toda sua vida, procurando convencer os donatistas de que só na unidade inclusive a africanidade pode ser verdadeira. E para que o entendessem os simples, que não podiam compreender o grande latim do orador, disse: tenho de escrever inclusive com erros gramaticais, em um latim muito simplificado. E o fez, sobretudo neste «Psalmus», uma espécie de simples poesia contra os donatistas para ajudar todos a compreender que só na unidade da Igreja se realiza realmente nossa relação com Deus e cresce a paz no mundo.
            Nesta produção destinada a um grande público, tem particular importância o grande número de suas homilias, com frequência improvisadas, transcritas por taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre estas, destacam as belíssimas «Enarrationes in Psalmus», muito lidas na Idade Média. A publicação de milhares de homilias de Agostinho, com frequência sem controle do autor, explica tanto sua ampla difusão como sua vitalidade. Imediatamente, as pregações do bispo de Hipona se convertiam, pela fama do autor, em textos sumamente requeridos e eram utilizados também pelos demais bispos e sacerdotes como modelos, adaptados sempre a novos contextos.
            Na tradição iconográfica, um afresco de Latrão que se remonta ao século IV representa Santo Agostinho com um livro na mão, não só para expressar sua produção literária, que tanta influência teve no pensamento dos cristãos, mas também para expressar seu amor pelos livros, pela literatura e pelo conhecimento da grande cultura precedente. Ao morrer, não deixou nada, conta Posídio, mas «recomendava sempre que se conservasse para as futuras gerações a biblioteca da igreja com todos seus códices», sobretudo os de suas obras. Nestas, sublinha Posídio, Agostinho está «sempre vivo» e é de utilidade para quem lê seus escritos, ainda que, como ele diz, «creio que poderiam tirar mais proveito de seu contato os que puderam vê-lo e escutá-lo quando falava pessoalmente na igreja e sobretudo os que foram testemunhas de sua vida cotidiana entre as pessoas» («Vita Augustini», 31). Sim, também para nós seria maravilhoso poder senti-lo vivo. Mas ele está realmente vivo em seus escritos; está presente em nós e deste modo vemos também a permanente vitalidade da fé pela qual ele entregou toda a sua vida.

A Morte

            (...) Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear seu sucessor. Por este motivo, em 26 de setembro do ano 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis quem havia designado para esta tarefa. Disse: «Nesta vida, todos somos mortais, mas o último dia desta vida é sempre incerto para cada indivíduo. De qualquer forma, na infância se espera chegar à adolescência; na adolescência, à juventude; na juventude, à idade adulta; na idade adulta, à idade madura; na idade madura, à velhice. Não se está seguro de que chegará, mas se espera. A velhice, pelo contrário, não tem ante si outro período no qual poder esperar; sua própria duração é incerta... Eu, por vontade de Deus, cheguei a esta cidade no vigor de minha vida; mas agora minha juventude passou e já sou velho» (Carta 213, 1).
            Nesse momento, Agostinho pronunciou o nome de seu sucessor designado, o sacerdote Heráclio. A assembléia estourou em um aplauso de aprovação, repetindo 23 vezes: «Graças sejam dadas a Deus!». Com outras aclamações, os fiéis aprovaram também o que depois disse Agostinho sobre os propósitos para seu futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Carta 213, 6).
            De fato, seguiram quatro anos de extraordinária atividade intelectual: concluiu obras importantes, empreendeu outras não menos significativas, manteve debates públicos com os hereges – sempre buscava o diálogo –, promoveu a paz nas províncias africanas insidiadas pelas tribos bárbaras do sul.
            Neste sentido, escreveu ao conde Dario, que foi à África para superar as diferenças entre o conde Bonifácio e a corte imperial, das que se aproveitavam as tribos dos vândalos para as suas invasões: «Título de grande glória é precisamente o de adiar a guerra com a palavra, em vez de matar os homens com a espada, e buscar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Certamente, inclusive aqueles que combatem, se são bons, buscam sem dúvida a paz, mas à custa de derramar sangue. Tu, pelo contrário, foste enviado precisamente para impedir que se derrame o sangue» (Carta 229, 2).
            Infelizmente foi defraudada a esperança de uma pacificação dos territórios africanos: em maio do ano 429, os vândalos, enviados à África como vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o Estreito de Gibraltar e penetraram na Mauritânia. A invasão se estendeu rapidamente por outras ricas províncias africanas. Em maio e em junho do ano 430, «os destruidores do império romano», como Possídio qualifica esses bárbaros (Vida, 30, 1), rodeavam Hipona, assediando-a.
            Na cidade, também se havia refugiado Bonifácio, que, reconciliando-se tarde demais com a corte, tratava em vão de bloquear a passagem dos invasores. O biógrafo Possídio descreve a dor de Agostinho: «Mais que de costume, suas lágrimas eram seu pão dia e noite e, levando já ao final de sua vida, ele se arrastava mais que os outros, na amargura e no luto, sua velhice» (Vida, 28, 6). E explica: «Esse homem de Deus via as matanças e as destruições das cidades; as casas destruídas nos campos e os habitantes assassinados pelos inimigos ou expulsos; as igrejas sem sacerdotes ou ministros, as virgens consagradas e os religiosos dispersos por toda parte; entre eles, alguns haviam desfalecido ante as torturas, outros haviam sido assassinados com a espada, outros eram prisioneiros, perdendo a integridade da alma e do corpo e inclusive a fé, obrigados pelos inimigos a uma escravidão dolorosa e longa» (ibidem, 28,8).
            Ainda que era ancião e estava cansado, Agostinho permaneceu em primeira linha, consolando a si mesmo e aos outros com a oração e com a meditação dos misteriosos desígnios da Providência. Falava da «velhice do mundo» – e era verdadeiramente velho este mundo romano –, falava desta velhice como já o havia feito anos antes para consolar os refugiados procedentes da Itália, quando no ano 410 os godos de Alarico invadiram a cidade de Roma.
            Na velhice, dizia, abundam os ataques: tosse, catarro, remelas, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é sempre jovem. E lançava este convite: «não se deve negar-se a rejuvenescer com Cristo, que te diz: ‘Não temas, tua juventude se renovará como a da águia’» (cf.Sermão 81, 8). Por isso, o cristão não deve abater-se nas situações difíceis, mas procurar ajudar o necessitado.
            É o que o grande doutor sugere respondendo ao bispo de Tiabe, Honorato, que lhe havia pedido se, sob a pressão das invasões bárbaras, um bispo ou um sacerdote ou qualquer homem de Igreja podia fugir para salvar a vida. «Quando o perigo é comum a todos, ou seja, para bispos, clérigos e leigos, quem tem necessidade dos outros não deve ser abandonado por aqueles de quem tem necessidade. Neste caso, todos devem refugiar-se em lugares seguros; mas se alguns têm necessidade de ficar, que não sejam abandonados por quem tem o dever de assisti-los com o ministério sagrado, de maneira que, ou se salvam juntos ou juntos suportam as calamidades que o Pai de família quer que sofram» (Carta 228, 2). E concluía: «Esta é a prova suprema da caridade» (ibidem, 3). Como não reconhecer nestas palavras a heróica mensagem que tantos sacerdotes, através dos séculos, acolheram e tornaram sua?
            «No terceiro mês daquele assédio – narra – ficou com febre: era sua última doença» (Vida, 29, 3). O santo ancião aproveitou aquele momento, finalmente livre, para dedicar-se com mais intensidade à oração. Costumava dizer que ninguém, bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer sua conduta, pode enfrentar a morte sem uma adequada penitência. Por este motivo, repetia continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes havia recitado com o povo (cf. ibidem, 31, 2).
            Quanto mais se agravava sua situação, mais necessidade o bispo sentia de solidão e de oração: «Para não ser perturbado por ninguém em seu recolhimento, aproximadamente dez dias antes de abandonar o corpo, ele nos pediu que não deixássemos ninguém entrar em seu quarto, com exceção dos momentos nos quais os médicos vinham para vê-lo ou quando lhe levavam a comida. Sua vontade foi cumprida fielmente e durante todo esse tempo ele aguardava em oração» (ibidem, 31, 3). Faleceu em 28 de agosto do ano 430: seu grande coração finalmente descansou em Deus.
            «Por ocasião da inumação de seu corpo – informa Possídio –, ofereceu-se a Deus o sacrifício, ao qual assistimos, e depois ele foi sepultado» (Vida,31, 5). Seu corpo, em data incerta, foi trasladado à Cardenha e, no ano 725, a Pavia, à basílica de São Pedro no Céu de Ouro, onde descansa hoje. Seu primeiro biógrafo dá este juízo conclusivo: «Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência e à obediência a seus superiores, junto com as bibliotecas que continham os livros e discursos dele e de outros santos, pelos que se conhece qual foi, por graça de Deus, seu mérito e sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo» (Possídio, Vida, 31, 8).
            É um juízo ao qual podemos associar-nos: em seus escritos também nós o «encontramos vivo». Quando leio os escritos de Santo Agostinho, não tenho a impressão de que seja um homem morto há mais ou menos 1.600 anos, mas o sinto como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que nos fala com sua fé fresca e atual.
            Em Santo Agostinho que nos fala – fala a mim em seus escritos –, vemos a atualidade permanente de sua fé, da fé que vem de Cristo, do Verbo Eterno encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, ainda que tenha sido pregada ontem; é sempre atual, porque realmente Cristo é ontem, hoje e sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Deste modo, Santo Agostinho nos anima a confiar neste Cristo sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.

Fé e Razão

            (...) Meu querido predecessor João Paulo II lhe dedicou, em 1986, ou seja, no décimo sexto centenário de sua conversão, um longo e denso documento, a carta apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto como «uma ação de graças a Deus pelo dom que fez à Igreja, e mediante ela à humanidade inteira, graças àquela admirável conversão». (Augustinum Hipponensem, 1). Quero enfrentar o tema da conversão em uma próxima audiência. É um tema fundamental não só para sua vida pessoal, mas também para a nossa. No Evangelho do domingo passado, o próprio Senhor resumiu sua pregação com a palavra: «Convertei-vos». Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderemos meditar sobre o que é esta conversão: é algo definitivo, decisivo, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda nossa vida.
            A catequese de hoje está dedicada, pelo contrário, ao tema fé e razão, que é um tema determinante, ou melhor, o tema determinante da biografia de Santo Agostinho. Desde criança, havia aprendido de sua mãe, Mônica, a fé católica. Mas sendo adolescente, havia abandonado esta fé porque já não conseguia ver sua racionalidade e não queria uma religião que não fosse expressão da razão, ou seja, da verdade. Sua sede de verdade era radical e o levou a afastar-se da fé católica. Mas sua radicalidade era tal que não podia contentar-se com filosofias que não chegassem à própria verdade, que não chegassem até Deus. E a um Deus que não fosse só uma hipótese última cosmológica, mas que fosse o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra em nossa própria vida. Deste modo, todo o itinerário intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes, mas para todo homem que busca a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de todo o ser humano.
            Estas duas dimensões, fé e razão, não devem separar-se nem contrapor-se, mas devem estar sempre unidas. Como escreveu Agostinho após sua conversão, fé e razão são «as forças que nos levam a conhecer» (Contra Acadêmicos, III 20, 43). Neste sentido, continuam sendo famosas suas duas fórmulas (Sermões, 43, 9) com as quais expressa esta síntese coerente entre fé e razão: crede ut intelligas («crê para compreender») – crer abre o caminho para cruzar a porta da verdade –, mas também e de maneira inseparável, intellige ut credas («compreende para crer»), perscrutar a verdade para poder encontrar a Deus e crer.
            As duas afirmações de Agostinho manifestam com eficácia e profundidade a síntese deste problema, em que a Igreja Católica vê seu caminho manifestado. Historicamente, esta síntese foi-se formando já antes da vinda de Cristo, no encontro entre a fé judaica e o pensamento grego no judaísmo helênico. Sucessivamente, na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo que Deus não está longe: não está longe de nossa razão, de nossa vida; está perto de todo ser humano, perto de nosso coração e de nossa razão, se realmente nos colocamos a caminho.
            Precisamente esta proximidade de Deus do homem foi experimentada com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode reconhecer-se e descobrir-se na própria intimidade: não há que sair para fora – afirma o convertido –, «volte sobre ti mesmo. A verdade habita no homem interior. E se encontras que sua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda ao fazê-lo assim que transcendes uma alma que raciocina. Assim, pois, dirige-te ali onde se acende a própria luz da razão» (De vera religione, 39, 72). Ele mesmo sublinha em uma afirmação famosíssima do início das Confissões, autobiografia espiritual escrita em louvor de Deus: «Nos fizeste, Senhor, para ti, e nosso coração está inquieto, até que descanse em ti» (I, 1,1).
            A distância de Deus equivale, portanto, à distância de si mesmos. «Porque tu – reconhece Agostinho (Confissões III, 6, 11) – estavas dentro de mim, mais interior que o mais íntimo meu e mais elevado que o mais supremo meu», interior intimo meo et superior summo meo; até o ponto de que, em outra passagem, recordando o tempo precedente a sua conversão, acrescenta: «Tu estavas, certamente, diante de mim, mas eu me havia afastado de mim mesmo e não me encontrava» (Confissões V, 2, 2). Precisamente porque Agostinho viveu em primeira pessoa este itinerário intelectual e espiritual, soube apresentá-lo em suas obras com tanta proximidade, profundidade e sabedoria, reconhecendo em outras duas famosas passagens das Confissões(IV, 4, 9 e 14, 22) que o homem é «um grande enigma» (magna quaestio) e «um grande abismo» (grande profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e preenche. Isto é importante: quem está longe de Deus também está longe de si mesmo, alienado de si mesmo, e só pode encontrar a si se se encontra com Deus. Deste modo, consegue chegar a seu verdadeiro eu, sua verdadeira identidade.
            O ser humano, sublinha depois Agostinho no De civitate Dei (XIII, 27), é sociável por natureza mas anti-sociável por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade, e «caminho universal da liberdade e da salvação», como repetiu meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): foi deste caminho, que nunca faltou ao gênero humano, segue afirmando Agostinho nessa mesma obra, «ninguém foi libertado nunca, ninguém é libertado, ninguém será libertado» (De civitate Dei, X, 32, 2). Como único mediador da salvação, Cristo é cabeça da Igreja e está unido misticamente a ela de modo que Agostinho afirma: «Nos convertemos em Cristo. De fato, se ele é a cabeça, nós somos seus membros, o homem total é ele e nós» (In Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).
            Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja, segundo a visão de Agostinho, está portanto ligada intimamente ao conceito de Corpo de Cristo, fundamentada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Portanto, é fundamental que a Igreja, povo de Deus, em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente integrada em Cristo, que, segundo afirma Agostinho em uma página maravilhosa, «reza por nós, reza em nós, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele nossa voz e nós nele a sua» (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).
            Na conclusão da carta apostólica Augustinum Hipponensem, João Paulo II quis perguntar ao próprio santo o que podia dizer aos homens de hoje e responde sobretudo com as palavras que Agostinho confiou em uma carta ditada pouco depois de sua conversão: «Me parece que se deve levar aos homens a esperança de encontrar a verdade» (Epistulae, 1,1); essa verdade que é Cristo, Deus verdadeiro, a quem se dirige uma das orações mais lindas e famosas das Confissões (X, 27, 38): «Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Estavas dentro de mim e eu estava fora, e aí te procurava. Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Mas Tu me chamaste, clamaste e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste e curaste a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz».

            Deste modo, Agostinho encontrou a Deus e durante toda a sua vida fez sua experiência até o ponto de que esta realidade – que é antes de tudo o encontro com uma Pessoa, Jesus – mudou sua vida, como muda a de todos que, homens e mulheres, em todo tempo, têm a graça de encontrar-se com Ele. Peçamos ao Senhor que nos dê esta graça e nos faça encontrar assim sua paz.

Papa Bento XVI