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Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos



CARD. Alfons M. Stickler

ÍNDICE: I.
Introdução. II.
Conceito e método.
 1. O significado do conceito de celibato: a continência.
2. As regras da investigação sobre a origem e o desenvolvimento do celibato eclesiástico.
3. O início do recente debate sobre as origens do celibato.
4. Transmissão oral de Direito.
5. Os postulados dos dados teológicos.

III. Evolução da continência na Igreja latina
1. O Concílio de Elvira.
2. A consciência da tradição do celibato nos concílios africanos.
3. O testemunho da Igreja de Roma.
4. O testemunho dos Padres e escritores eclesiásticos.
5. Evolução da questão nos séculos seguintes.
6. A Reforma Gregoriana.
7. Celibato no direito canônico clássico.
8. A continuidade da doutrina da Igreja na época moderna.

IV. O celibato na disciplina das Igrejas Orientais.
1. O testemunho de Epifânio de Salamina.
2. São Jerônimo.
3. A questão do eremita Pafnucio.
 4. A fragmentação do sistema de disciplina no Oriente.
5. A legislação do II Concilio Trullano
6. Razões para a nova disciplina adotada: a mudança nos textos.

V. Os fundamentos teológicos da disciplina do celibato.
1. A relação sacerdotal com Cristo.
2. Fundamento histórico-doutrinal.
3. O ensino do Antigo Testamento.
4. A teologia do celibato sacerdotal.

VI. Conclusão.




I. INTRODUÇÃO


No debate sobre o celibato dos ministros da Igreja Católica, que regressa de novo e que tem se intensificado nos últimos tempos, encontramos as mais variadas opiniões, especialmente no que se refere à sua origem e desenvolvimento na Igreja Ocidental e Oriental. Essas opiniões vão desde a convicção de sua origem divina até da que se trata – especialmente no caso da disciplina, mais restrita, da Igreja latina – de uma mera instituição eclesiástica. Da disciplina da Igreja Latina, se afirma freqüentemente que a obrigatoriedade do celibato só poderia ser constatada desde o século IV em diante; para outros, ela foi adotada no início do segundo milênio, concretamente a partir do II Concilio de Latrão em 1139.
Essas opiniões tão distantes entre si e as razões e as premissas que se alegam para sustentá-las, permitem constatar a existência de uma significativa imprecisão no conhecimento dos fatos e das disciplinas eclesiásticas a esse respeito, e ainda mais sobre os motivos do celibato eclesiástico. Esta imprecisão é verificada inclusive em algumas declarações no ambiente eclesiástico, alto ou baixo.
Parece, pois, necessário para alcançar um conhecimento seguro desta tão criticada Instituição, esclarecer os fatos e as disposições da Igreja, desde o início até hoje, e analisar os seus fundamentos teológicos. É evidente que este objetivo, se quisermos que a nossa exposição tenha validade científica, só será alcançado a partir de um conhecimento atualizado das fontes e da bibliografia sobre a questão.
Neste sentido, convém notar que, nos últimos tempos, foram alcançados importantes resultados sobre a história do celibato eclesiástico, no Ocidente e no Oriente. Mas tais resultados ou ainda não entraram na consciência geral, ou são silenciados, pois se considera que poderiam influenciar de uma forma não desejada em dita consciência.
Esta exposição sintética irá acompanhada de um dispositivo científico que se limita ao essencial e que permite, junto ao controle das afirmações feitas, um eventual aprofundamento posterior no seu conteúdo.
A descrição da evolução histórica da questão, tanto na Igreja ocidental como na oriental, irá precedida de uma parte na que, acima de tudo, se fará um esclarecimento do conceito de celibato eclesiástico que está na base das obrigações que impõe, para em seguida indicar o método exigido para chegar – em uma adequada apreciação do tema – a conclusões seguras. A última parte será dedicada às bases ou fundamentos teológicos do celibato, cujo desenvolvimento é cada vez mais necessário.


II. CONCEITO E MÉTODO
  1. Significado do conceito do celibato: a continência.
A primeira e mais importante premissa para conhecer o desenvolvimento histórico de qualquer instituição é a identificação do verdadeiro significado dos conceitos sobre os quais se baseia. No caso do celibato eclesiástico, foi oferecida de maneira clara e concisa por um dos maiores decretistas: Uguccio Pisa, que na sua conhecida Summa, composta aproximadamente em 1190, começa o comentário ao tratado do celibato com estas palavras: “No início desta distinção (Graciano) para tratar especialmente da continentia clericorum, ou seja, a que devem observar in non contrahendo matrimonio et in non utendo contracto.

Nestas palavras é mencionada, com a clareza desejável, uma dupla obrigação: a de não se casar e a de não usar de um casamento previamente contraído. Isto mostra que naquela época, ou seja, no final do século XII, ainda havia clérigos maiores que se tinham casado antes de receber a sagrada Ordenação.
A mesma Sagrada Escritura nos mostra que a Ordenação de homens casados foi, de fato, uma coisa normal, porque São Paulo escreve a seus discípulos Timóteo e Tito que tais candidatos deveriam ter se casado apenas uma vez. Sabemos que pelo menos São Pedro esteve casado, e talvez houvesse outros Apóstolos, pois o próprio Pedro disse ao Mestre: “nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será nosso futuro?” E Jesus na sua resposta disse: “em verdade vos digo que ninguém que tenha deixado casa, pais, irmãos, esposa, filhos pelo reino de Deus deixará de receber muito mais no mundo presente e a vida eterna no mundo futuro”.
Aparece já aqui a primeira obrigação do celibato eclesiástico, isto é, a continência de todo uso do matrimônio posteriormente à Ordenação sacerdotal, da qual decorre tal obrigação. Nisto consiste realmente o significado do celibato, hoje quase esquecido, mas claro para todos durante o primeiro milênio, inclusive antes: a absoluta continência na geração de filhos, incluindo a permitida (inclusive devida) por ser própria do matrimônio.
De fato, em todas as primeiras leis escritas sobre celibato – conforme mostraremos por documentos na segunda parte – fala-se da proibição de gerar filhos depois da Ordenação. Este fato demonstra que esta obrigação devia ser fortemente exigida para o grande número de clérigos anteriormente casados, e que a proibição do casamento tinha no início uma importância secundária. Esta última só passou para o primeiro plano quando a Igreja começou a preferir e, em seguida, a impor candidatos celibatários, dentre aqueles que eram escolhidos quase exclusivamente dos aspirantes às Sagradas Ordens.
Para concluir este primeiro esboço do significado do celibato eclesiástico, que foi chamado desde o início com propriedade “continência”, é preciso esclarecer, rapidamente, que os candidatos casados podiam ser ordenados e renunciar à utilização do matrimônio apenas com o consentimento da sua esposa, já que ela, por força do sacramento recebido, possuía um direito inalienável à utilização do casamento contraído e consumado, que é indissolúvel. O conjunto de questões derivadas de tal renúncia, será tratado na segunda parte.
  1. Orientações para a investigação sobre a origem e desenvolvimento do celibato eclesiástico.
O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correto da origem e do desenvolvimento do celibato eclesiástico – ao que podemos chamar simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado – é tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser explicado pelo fato do método justo de investigar e expor a questão não ser observado.
Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, em uma investigação de caráter histórico não se pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a integridade dessas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.
Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade de compreender e utilizar adequadamente documentos e o seu conteúdo. Somente sobre esta base segura – autenticidade, integridade, credibilidade e valor – se pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes.
Junto a estes pressupostos metodológicos gerais, é necessário também aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A Historiografia Filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento adequado da Filosofia, bem como a Historiografia Teológica pressupõe o conhecimento da Teologia e a Historiografia da Medicina ou da Matemática requerem um conhecimento suficiente dessas ciências. Do mesmo modo, na Historiografia Jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas exigências metodológicas próprias.
De acordo com o dito, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se quisermos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do Direito Canônico e da Teologia. O significado e a necessidade dessas observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.
  1. Raízes do recente debate sobre as origens do celibato
No final do século passado, tivemos uma áspera discussão sobre a origem do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais. Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, seus resultados, sem receber uma resposta do seu adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão (dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura até hoje.
Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular as suas conclusões, não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de interpretação das fontes, que em um estudioso altamente qualificado, como ele sem dúvida era, é realmente estranho. Aceitou como bom, e a utilizou como um dos seus principais argumentos contra a opinião Bickell, a narração espúria sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnucio no Concílio de Nicéia em 325. E isso, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade desse episódio (o que está comprovado, como demonstraremos ao falar, na quarta parte, do Concílio de Nicéia). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável, ao aceitar apenas só a existência de uma obrigação oficial do celibato, que tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do historiador da teologia, Vacandard, e do historiador dos concílios, Leclercq.
  1. A transmissão oral do direito
Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais autoridade deste século, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius) é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto, toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima.
Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da transmissão de normas consuetudinárias que lentamente são postas por escrito. Por exemplo, os romanos, expressão do gênio jurídico mais perfeito, somente depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram seus ordenamentos jurídicos populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de cada indivíduo.
Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, o da jovem da Igreja foi, em grande medida, as disposições e obrigações transmitidas apenas oralmente; ainda mais quando – durante os três séculos de perseguição (embora intermitente) – dificilmente poderiam ter sido fixadas as leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía, já por escrito, alguns elementos de direito primitivo, e em maior medida de que outras sociedades jovens. Uma prova disso nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na verdade, em sua segunda carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras: “Exorto, pois, irmãos, ficai firmes e guardai as tradições que haveis aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”.
Estes se referem, sem dúvida, a disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas apenas oralmente e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não estaria fazendo justiça ao método de conhecimento próprio da história dos ordenamentos jurídicos.
  1. Os postulados do dado teológico
O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles, a um carisma intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise só podem ser feitos, conseqüentemente, à luz da revelação e da elaboração teológica.
Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito com questões jurídicas e disciplinares, nem do modo apropriado, mas se apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica – também chamada de “glosadores” – então muito florescente. Os historiadores da Teologia Medieval constataram isso há bastante tempo, e, um olhar para a obra do príncipe da Escolástica Medieval, confirma-o suficientemente. Esta realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida, hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho, procuraremos atender a essa exigência tão legítima.


III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA continência na IGREJA Latina
Afirmados os pressupostos necessários sobre o conceito e o método de investigação e exposição, analisaremos em primeiro lugar o tema da continência dos clérigos na Igreja Latina.
  1. O Concílio de Elvira
Entre os testemunhos de diversos tipos que interessam para o nosso assunto, deve ser mencionado, em primeiro lugar, o Concílio de Elvira. Na primeira década do século IV,  reuniram-se bispos e sacerdotes da Igreja da Espanha, no centro diocesano de Elvira, perto da Granada, para colocar sob uma regulamentação comum as diversas circunscrições eclesiásticas da Espanha, pertencente à parte ocidental do Império Romano, que gozava, sob o governo do César Constâncio, de uma paz religiosa relativamente boa. No período anterior, durante a perseguição dos cristãos, se havia constatado abusos em mais de um setor da vida cristã e havia sofrido danos graves na observância da disciplina eclesiástica. Em 81 cânones conciliares, são emanadas disposições relativas às áreas mais importantes da vida eclesiástica, necessitadas de clarificação e de renovação para reafirmar a antiga disciplina e para sancionar novas normas que se tinham tornado desnecessárias.
O Cânon 33 do Concílio contém a já conhecida primeira lei sobre o celibato. Sob a rubrica: “Sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas”, se encontra o seguinte texto dispositivo: “Se está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar, que devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isso deve ser excluído do estado clerical”. O cânon 27 já havia insistido na proibição de que habitassem com os bispos e outros eclesiásticos,  outras mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de si, uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha.
Desses primeiros e importantes textos legais se devem deduzir que muitos dos clérigos maiores da Igreja espanhola de então, talvez inclusive a maior parte, eram viri probati, quer dizer, homens casados antes de serem ordenados como diáconos, sacerdotes ou bispos. Todos, entretanto, estavam obrigados depois de ter recebido a Sagrada Ordenação a renunciar completamente do uso do matrimonio, quer dizer, à observância de uma perfeita continência. À luz do final do Concilio de Elvira, assim como do Direito e da História do Direito do Império Romano, dotado de uma cultura jurídica que dominava naquela época também na Espanha, não é possível ver no cânon 33 (junto com o cânon 27) uma lei nova. Manifesta-se claramente, ao contrário, como uma reação contra a inobservância, muito estendida, de uma obrigação tradicional e bem conhecida a que se acrescenta, nesse momento, uma sanção: ou se aceita o cumprimento da obrigação assumida, ou se renuncia ao estado clerical. A introdução de uma novidade nesse terreno, com retroatividade geral das sanções frente a direitos adquiridos desde a Ordenação, teria causado num mundo como aquele, tão imbuído do respeito ao legal, uma verdadeira tempestade de protestos ante a evidente violação de um direito. Isto já o havia percebido Pio XI quando, na sua Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa lei escrita supunha uma práxis precedente.
  1. A consciência da tradição do celibato nos Concílios africanos
Após a importante lei de Elvira, deve ser considerada outra ainda mais importante para o nosso tema, e voltaremos a encontrar logo como ponto-chave de referência. Trata-se de uma declaração vinculante, formulada no segundo Concílio Africano do ano 390 e repetida nos posteriores, que será posteriormente incluída no Código dos Cânones das Igrejas Africanas (e nos cânones in causa Apiarii), formalizada no importante Concílio do ano 419. Sob o título: “que a castidade dos sacerdotes e levitas deve ser protegida”, o texto afirma: “O bispo Epigônio disse: de acordo com aquilo que o anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os três graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma forma mais completa sobre o seu cumprimento. O bispo Genetlio continuou: como já mencionado, convém que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos, sejam continentes por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor; para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde antigamente”. “A isso os bispos responderam unanimemente: estamos todos de acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da castidade, se abstenham também de suas esposas, a fim de que em tudo e por parte de todos os que sirvam ao altar seja conservada a castidade”.
Dessa declaração dos Concílios de Cartago resulta que também na Igreja Africana uma grande parte, talvez a maioria do clero maior, estava casada antes da ordenação, e que depois dela, todos deviam viver em continência. Aqui esta obrigação é atribuída explicitamente ao sacramento da Ordem recebida e ao serviço do altar. Também é posta em relação explícita com um ensinamento dos Apóstolos e com uma observância praticada em todo o tempo passado (antiquitas), e se conclui com o assentimento unânime de todo o episcopado africano.
Devido a uma disputa com Roma, que também foi abordada nessas assembléias conciliares africanas, podemos conhecer em que medida foram conhecidas e vividas naquela Igreja, as tradições da Igreja antiga.
O sacerdote Apiário foi excomungado por seu bispo. Ele apelou para Roma, em que se aceitou o recurso por referência a algum cânon de Nicéia que autorizaria tais recursos. Os bispos africanos se declararam solidários com seu companheiro afirmando que não conheciam tal cânon niceno. Em diversas reuniões destes bispos, nas que também participaram delegados de Roma, se discutiu esse problema e ainda se conservam os cânones in causa Apiarii. Os africanos alegavam que na sua relação dos cânones nicenos não aparecia uma disposição semelhante àquela, e tinham enviado delegados a Alexandria, Antioquia e Constantinopla para obter a informação pertinente. Mas também lá não se sabia nada sobre tais cânones. Mais tarde foi esclarecido o erro de Roma, baseado no fato de que lá se tinha adicionado aos cânones de Nicéia os do Concílio de Sárdica no ano 342, dedicado também à questão ariana e celebrado sob o mesmo presidente: o bispo Ósio de Córdoba. Por esse motivo, os cânones disciplinares de Sárdica foram acrescentados no arquivo de Roma aos de Nicéia, e todos tinham sido considerados nicenos. Em Sárdica se tinha aprovado aquele cânon (can. 3). A Igreja Africana não teve dificuldade em demonstrar ao Papa Zósimo a errônea atribuição ao Concílio de Nicéia.
A sessão principal dedicada a esta questão, que foi em 25 de maio de 419, foi presidida por Aurélio, bispo de Cartago. Participavam o legado de Roma, Faustino de Fermo, com dois presbíteros romanos, Felipe e Acélio, além de 240 bispos africanos entre os quais estava Agostinho de Hipona e Alípio de Tagaste. O Presidente introduziu o debate com estas palavras: “Temos, diante de nós, os exemplares das disposições que nossos Padres trouxeram de Nicéia. Nós as conservamos em sua forma original e guardamos também os sucessivos decretos subscritos por nós”. Depois recitaram o Símbolo da fé na Santíssima Trindade, pronunciado por todos os Padres conciliares.
Em terceiro lugar foi repetido o texto sobre a continência dos clérigos do Concílio de 390, ao que já aludimos, que então tinha sido recitado por Epigônio e Genetlio e que agora era pronunciado por Aurélio. O legado papal, Faustino, sob a rubrica “dos graus da Ordem Sagrada que devem abster-se de suas esposas”, acrescentou: “estamos de acordo que os bispos, sacerdotes e diáconos, quer dizer, todos os que tocam os Sacramentos como guardiões da castidade, devem abster-se de suas esposas”. A isso responderam todos os bispos: “estamos de acordo que a castidade deve ser guardada em tudo e por todos os que servem ao altar”.
Entre as normas que tomadas do patrimônio tradicional da Igreja Africana foram em seguida relidas ou novamente decididas, se encontram no vigésimo quinto posto um texto do presidente Aurélio: “nós, queridos irmãos, acrescentamos também que em relação ao que foi dito da incontinência de alguns clérigos, que eram somente leitores, com suas próprias esposas, se decidiu o que também noutros Concílios foi confirmado: que os subdiáconos, que tocam os santos mistérios, e os diáconos, sacerdotes e bispos devem, segundo as normas vigentes para eles, abster-se da própria esposa e se comportar como se não a tivesse; e se não se ativerem a isso, devem ser afastados do serviço eclesiástico. Os demais clérigos não estão obrigados até uma idade mais madura. Depois disso todo o Concílio respondeu: nós confirmamos tudo o que Vossa Santidade disse de maneira justa e é santo e agradável a Deus”.
Recolhemos aqui com tanto detalhe esse testemunho da Igreja Africana do final do século IV e do começo do século V por causa de sua fundamental importância. Desses textos se deduzem a clara consciência de uma tradição baseada não somente numa persuasão geral, que ninguém suspeitava, mas também em documentos bem conservados. Naqueles anos foram encontradas ainda no arquivo da Igreja Africana, as atas originais que os Padres tinham trazido do Concílio de Nicéia. Se houvesse disposições contrárias ao celibato eclesiástico tal e como o vemos afirmado, tinham sido mencionadas da mesma forma que sucedeu com o erro ou o descuido da Igreja Romana a respeito dos cânones de Sárdica atribuídos a Nicéia.
Tudo isso mostra também a consciência de uma tradição comum da Igreja Universal, cujas diversas partes guardam uma comunhão viva entre si. O que na Igreja Africana foi afirmado muito explícita e repetidamente sobre a origem apostólica e a observância transmitida desde a Antiguidade da continência dos eclesiásticos junto com as sanções aos que a desobedecessem, não teria sido certamente aceito de modo tão geral e pacífico, se não houvesse tido o aval de ser um fato comumente conhecido. Sobre isso temos ainda testemunhos explícitos da Igreja Oriental, que teremos oportunidade de analisar.
  1. O testemunho da Igreja de Roma
No contexto do testemunho Africano sobre o celibato, já escutamos uma voz muito autorizada por parte de Roma: o legado pontifício Faustino que manifestou em Cartago a plena correspondência de Roma sobre essa questão, suscitada ali incidentalmente.
Roma, aliás, já tinha enviado uma carta aos bispos da África, na época do Papa Sirício, que comunicava as decisões do Sínodo Romano de 386, nas que se insistia novamente em algumas importantes disposições apostólicas. Esta carta tinha sido comunicada durante o Concílio de Telepte do ano 418. A última parte da mesma (can. 9.) trata precisamente da continência do clero.
Com esse documento, introduzimo-nos no segundo conjunto de testemunhos sobre o celibato – presentes nas disposições dos Romanos Pontífices sobre esse tema – que tem claramente um maior peso, não só quanto à consciência da tradição observada pela Igreja Universal, mas também para o desenvolvimento posterior e para a observância do celibato clerical.
Uma afirmação geral sobre a importância da posição de Roma sobre qualquer assunto e, portanto, também sobre o celibato, é proveniente de Santo Irineu, que, tendo sido discípulo de São Policarpo, estava relacionado com a tradição joanica que ele – como bispo de Lião, a partir do ano 178 – transmitia também para a Igreja na Europa. Se na sua principal obra “Contra as heresias” afirma que a tradição apostólica é preservada na Igreja de Roma, fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo, e é por isso que todas as outras igrejas devem concordar com ela, podemos dizer que isso vale também para a tradição sobre a continência dos eclesiásticos.
Os primeiros testemunhos explícitos a respeito provêm de dois Papas: Sirício e Inocêncio I. Ao predecessor do primeiro, o Papa Dâmaso, tinha sido apresentado pelo bispo Himério de Tarragona algumas questões às quais só o seu sucessor, ou seja, Sirício, tinha dado uma resposta. Quando perguntado sobre a obrigação dos clérigos maiores à continência, o Papa respondeu na carta Directa, em 385, dizendo que os sacerdotes e diáconos que, depois da Ordenação, geram filhos, atuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que obriga aos clérigos maiores desde o início da Igreja. A apelação ao fato de que no Antigo Testamento, os sacerdotes e levitas podiam usar do matrimônio, fora do tempo do seu serviço no Templo, foi refutada pelo Novo Testamento, no qual os clérigos maiores devem prestar culto sagrado todos os dias; por isso a partir do dia da sua ordenação, deve viver continuamente a continência.
Uma segunda carta do mesmo Papa, referindo-se à mesma questão e que já a mencionamos, é a enviada aos bispos africanos em 386, que relatou as deliberações de um Sínodo Romano. Essa carta é especialmente ilustrativa sobre o tema do celibato. O Papa assinalou, acima de tudo, que os pontos tratados no Sínodo não se referem a novas obrigações, mas sim a pontos de fé e de disciplina, que, por causa da preguiça e da inércia de alguns, têm sido negligenciados. Devem, portanto, ser revitalizados, pois, segundo as palavras da Sagrada Escritura, “Sê forte e observa as nossas tradições que recebestes, quer oralmente, quer por escrito” (2 Tes 2, 15), trata-se de disposições dos Padres Apostólicos. O Sínodo Romano é, portanto, consciente de que as tradições recebidas apenas oralmente são vinculativas. E aludindo ao juízo divino, observa que todos os bispos católicos devem observar nove disposições que são enumeradas.
A nove delas é exposta com detalhes: “os sacerdotes e levitas não devem ter relações sexuais com suas esposas, porque devem estar ocupados diariamente com o seu ministério sacerdotal”. São Paulo escreveu aos Coríntios que eles deviam se abster das relações sexuais para se dedicar à oração. Se aos leigos a continência é imposta, a fim de serem ouvidos na sua oração, com muito maior razão deve estar disposto em todo momento o sacerdote para oferecer, com castidade verdadeira, o Sacrifício e para administrar o Batismo. Depois de outras considerações ascéticas, é rejeitada – que eu saiba, pela primeira vez no Ocidente – pelos oitenta bispos reunidos, uma objeção, ainda hoje viva, que visa provar à continuidade no uso do matrimônio com base nas palavras do Apóstolo São Paulo segundo as quais, o candidato às Sagradas Ordens, só podia ter estado casado uma vez. Essas palavras, apontaram os bispos, não querem dizer que se pode continuar vivendo na concupiscência e gerando filhos, mas foram precisamente ditas em favor da futura continência. É ensinado, por conseguinte, oficialmente – e será repetido continuamente – que as segundas núpcias ou o matrimônio com uma viúva, não oferecem segurança de continência futura. A carta conclui com uma exortação a obedecer estas disposições que estão sustentadas pela tradição.
O seguinte Romano Pontífice que se ocupou amplamente da continência do clero é Inocêncio I (401 a 417). Provavelmente é sua uma carta sobre essa matéria, atribuída primeiro a Dâmaso e depois a Sirício. Quando foram apresentadas algumas questões pelos bispos da Gália, foram examinadas num Sínodo Romano uma série de questões práticas, cujos resultados, ou respostas, foram comunicadas na carta Dominus inter no começo do século IV. A terceira das dezesseis perguntas se referia à “castidade e pureza dos sacerdotes”. Na introdução, o Papa constata que “muitos bispos em várias igrejas particulares têm mudado temerariamente a tradição dos Padres, e caíram na escuridão da heresia, preferindo a honra que vem dos homens, ao mérito diante de Deus”.
E como o demandante, movido não pela curiosidade, mas pelo desejo de estar seguro na fé, tratava de alcançar da autoridade da Sé Apostólica informações sobre as leis e sobre as tradições, comunica-lhes com uma linguagem simples, mas de conteúdo seguro, o que se deve saber para poder corrigir todas as deficiências que a arrogância humana causou.
A terceira das questões propostas dá a seguinte resposta: “Em primeiro lugar, no que diz respeito aos bispos, sacerdotes e diáconos, que devem participar nos sacrifícios divinos, por cujas mãos se comunicam a graça do batismo e se oferecem o Corpo de Cristo, decidiu-se que estão obrigados, não só por nós, mas pela Divina Escritura, à castidade (ao qual também os Padres ordenaram que observassem a continência corporal)”. Continua então uma ampla exposição – que ainda hoje é digna de ser recordada – dos motivos, sobretudo bíblicos, da dita prescrição, e se conclui dizendo que, ainda que só fosse pela veneração devida à religião, não se deve confiar o ministério divino aos desobedientes.
Outras três cartas do mesmo Papa repetem os conceitos de seu antecessor Sirício, aos quais se unem plenamente. Trata-se da carta a Victricio de Rouen, de 15 de fevereiro de 404; da dirigida a Exupério de Tolosa, de 20 de fevereiro de 405 e da dirigida aos bispos Máximo e Severo de Calábria, de data incerta. É importante notar que sempre se pede sanções contra os impenitentes que devem ser afastados do ministério clerical.
Os seguintes Pontífices Romanos também se esforçaram para preservar a estrita observância da tradicional continência do clero. Basta recordar, entre os mais importantes destes séculos, os depoimentos de dois deles: Leão Magno e Gregório Magno.
Leão Magno, em 456, escreveu ao bispo Rústico de Narbona: “A lei da continência é a mesma para os ministros do altar (diáconos), para os sacerdotes e bispos. Quando eram ainda leigos e leitores podiam se casar e gerar filhos. Mas, ao serem elevados aos graus anteriormente citados, começou a não ser lícito para eles o que antes o era. De fato, para que o matrimônio carnal chegue a ser um matrimônio espiritual, não é necessário que as esposas sejam afastadas, mas sim que se considerem como se não as tivessem, deste modo se salva o amor conjugal e, ao mesmo tempo, cessa o uso do matrimônio”.
O Papa confirmou assim outro ponto relacionado com a continência dos clérigos casados, que na legislação precedente era também mencionado, a saber: que as esposas dos clérigos casados, após a Ordenação de seus maridos, devem ser sustentadas pela Igreja. A posterior coabitação com o marido, então obrigado à continência, não era geralmente tolerada pelo perigo de faltar à obrigação assumida. Foi permitida apenas nos casos em que esse risco estava excluído. Qualquer texto contra o abandono das esposas deve ser interpretado nesse mesmo sentido, como é evidente nesse fragmento de Leão Magno.
Deve acrescentar-se que este Papa estendeu aos subdiáconos a obrigação à continência posterior à sagrada Ordenação, que até agora não estava claro, por causa da dúvida que existia sobre se a Ordem do subdiaconado pertencia ou não às Ordens maiores.
Gregório Magno (590 a 604) faz compreender nas suas cartas, ao menos indiretamente, que a continência dos eclesiásticos era substancialmente observada na Igreja Ocidental. Dispôs simplesmente que também a ordenação de subdiácono comportava, definitivamente e para todos, a obrigação de perfeita continência. Ele também sugeriu, repetidamente, que a coexistência entre clérigos maiores e mulheres não autorizadas para isso continuava estando absolutamente proibida, e devia, portanto, ser impedida. E como as esposas não pertenciam normalmente à categoria das autorizadas, dava com isso uma significativa interpretação ao cânon 3 do Concílio de Nicéia.
Do acima exposto, podemos já deduzir uma primeira constatação de singular importância: na Igreja Ocidental, ou seja, na Europa e nas regiões da África pertencentes ao Patriarcado de Roma, a unidade da fé era e permanecia sempre viva, junto com a unidade também da disciplina, algo que se manifesta pela comunicação, mais ou menos intensa, mas nunca interrompida, entre as várias igrejas regionais. Assim, os representantes de outras regiões eram admitidos nos Concílios Provinciais. Em Elvira, por exemplo, esteve presente, entre outros, Eutiques, como representante de Cartago, e no Concílio de Cartago de 418, que tratou da questão dos pelagianos, estavam também bispos da Espanha.
Essa consciência de unidade e de substancial uniformidade é encontrada explicitamente nas atas conciliares da época. O Primado Romano cada vez mais operativo desde o momento em que as perseguições tinham terminado: era a atualização e a concretização do princípio da unidade. Essa realidade reflete-se sobretudo nas questões essenciais para a fé da Igreja Universal, mas nós podemos constatá-la também nas questões disciplinares, especialmente no ambiente do Patriarcado Romano.
Uma prova de primeira ordem desta unidade disciplinar é precisamente a que se adverte na questão que nos ocupa: sobre a continência do clero. Junto à práxis conciliar, que é eficaz desde o início, afirmando-a e confirmando-a, surge a ação orientadora e o cuidado universal em sua conservação por parte dos Romanos Pontífices, começando pelo Papa Siríaco. Se o celibato eclesiástico corretamente entendido foi conservado claramente em conformidade com a consciência clara de sua origem e da sua antiga tradição, apesar das dificuldades que surgem sempre e em toda a parte, devemo-lo, sem dúvida, à solicitude ininterrupta dos Papas. Uma prova a sensu contrario desta afirmação nos virá dada pela história do celibato na Igreja Oriental. Mas antes de entrar nela, devemos ainda prosseguir com outras fases do seu desenvolvimento na Igreja do Ocidente.
  1. O testemunho dos Padres e dos escritores eclesiásticos
Os Padres e os escritores eclesiásticos pertencem à categoria das mais importantes testemunhas da fé e da tradição nos primórdios da Igreja.
Sobre a questão da continência do clero é conveniente escutar primeiro a Santo Ambrósio. Na sua sede em Milão, na qualidade de “Consularis Aemiliae et Liguriae”, Ambrósio, eleito bispo, se tornou rapidamente um dos mais importantes homens da Igreja do Ocidente. No que diz respeito ao nosso assunto, esse Pastor, especialmente sensível às obrigações jurídicas, devido a sua anterior atividade civil, tinha idéias muito claras. Ensina que os ministros do altar que estavam casados antes de sua Ordenação, não deveriam continuar usando do matrimônio depois da Ordenação – ainda que essa obrigação não tivesse sido sempre observada do modo devido, nas regiões mais remotas. Confrontado com a permissão vetero-testamentária, deve-se ver um novo mandato do Novo Testamento, pois os sacerdotes deste, estão obrigados a uma oração e a um ministério santo constante e contínuo.
São Jerônimo, que conhecia bem por experiência própria tanto a tradição do Ocidente como a do Oriente, disse na sua refutação do ano 393 a Joviniano, sem insinuar nenhuma distinção entre Ocidente e Oriente, que o Apóstolo Paulo, na famosa passagem de sua carta a Tito, ensinou que um candidato casado à Ordem sagrada deveria ter casado uma só vez, deveria ter educado bem aos filhos que tivesse, mas não podia procriar outros filhos. Devia, portanto, dedicar-se à oração e ao serviço divino e não só por um tempo limitado, como no Antigo Testamento, como conseqüência, “si semper orandum et ergo semper et semper carendum matrimonio”.

Em sua dissertação “Adversus Vigilantium” do ano 406, São Jerônimo repetia o dever dos ministros do altar de ser sempre continentes. E neste sentido afirma que esta é a prática da Igreja do Oriente, do Egito e da Sé Apostólica, onde só se aceita clérigos celibatários e continentes, ou, se são casados, que tenham renunciado previamente à vida matrimonial. Já no seu “Apologeticum ad Pammachium” tinha dito que também os Apóstolos eram “vel virgines vel post nuptias continentes”; y que “presbiteri, episcopi, diaconi aut virgines eiguntur aut vidui aut certe post sacerdotium in aeternum pudici”.
Santo Agostinho, bispo de Hipona desde o ano 395/96, conhecia bem a obrigação geral do clero maior à continência, ele que havia participado no Concílio de Cartago onde tal obrigação tinha sido repetidamente afirmada, apontando sua origem nos mesmos Apóstolos e numa constante tradição do passado. Não se conhece nenhuma dissidência sua em tais ocasiões. Em sua dissertação “De coniugiis adulterinis” também afirma que homens casados que, de repente e por isso mesmo quase  contra sua vontade, fossem chamados a fazer parte do clero maior e ordenados, estariam obrigados à continência, tornando-se, assim, um exemplo para aqueles leigos que, por viver longe de suas mulheres, são vulneráveis especialmente ao adultério.
O quarto grande Padre da Igreja Ocidental, Gregório Magno, já foi exposto como testemunha da continência dos ministros sagrados ao examinar os Romanos Pontífices.
Da prática disciplinar ocidental considerada até o momento, concluímos que: a continência própria dos três últimos graus do ministério clerical se manifesta na Igreja como uma obrigação que se remonta aos começos da Igreja, e que foi transmitida como um patrimônio da tradição oral. Após a era de perseguição e, especialmente, as como conseqüência das conversões cada vez mais numerosas, que exigiu também numerosas ordenações, houve amplas transgressões dessa obrigação, contra ao quais os Concílios e a solicitude dos Romanos Pontífices procederam cada vez com maior insistência por meio de leis e disposições escritas. Nessas aparecem também as conseqüências de tais transgressões que consistiam na suspensão ou expulsão do sagrado ministério.
Tudo isso nunca é apresentado como uma inovação, mas é sempre posto em referência com a origem da Igreja. Estamos autorizados, portanto, conforme as regras de um correto método jurídico-histórico, a considerar dita práxis como uma verdadeira obrigação vinculante transmitida por tradição oral antes de ter sido fixado por leis escritas. Quem quiser afirmar o contrário não somente se oporia a uma metodologia científica válida, mas também estaria tachando de mentirosos – porque de ignorância não poderiam ser acusados – a todos os testemunhos unânimes que até agora escutamos.
  1. Evolução da questão nos seguintes séculos
Nesta base, deduzida da prática da Igreja primitiva, podemos acompanhar o desenvolvimento do celibato eclesiástico nos séculos seguintes. Primeiro, vamos nos referir ao Ocidente.
Tal como nos primeiros tempos, também nas épocas posteriores muitos dos ministros sagrados eram, sem dúvida, escolhidos entre os homens casados. Esta situação é demonstrada pelo fato de que muitos Concílios da Espanha e da Gália insistir repetidamente (e sem interrupção) na obrigação da continência desses ministros.
As sanções foram atenuadas em algumas ocasiões, como, por exemplo, no Concílio de Tours, no ano 461, onde não se pune já com a e excomunhão para toda a vida, mas apenas com a exclusão do serviço eclesiástico.
Além disso, é cada vez mais enfatizada a preocupação da Igreja para dispor de candidatos às ordens maiores que sejam celibatários e para reduzir o número dos candidatos casados, já que a experiência mostrava o perigo permanente da debilidade humana ante as obrigações assumidas por estes candidatos.
Outra disposição que deve ser constantemente recordada e renovada foi a proibição de qualquer clérigo maior para viver sob o mesmo teto com mulheres que não oferecesse plena confiança pelo que se refere à observância da continência.
Para estabelecer um juízo de conjunto sobre a disciplina celibatária na Europa medieval, são muito significativas as disposições relativas à Igreja Insular (Irlanda – Bretanha). Os Livros Penitenciais, que refletem fielmente a vida e a disciplina em vigor nesta igreja, em muitos aspectos demonstram inequivocamente a validade para os clérigos maiores insulares previamente casados, das mesmas obrigações que estamos vendo. O que continuasse usando do matrimônio com sua esposa era considerado culpado de adultério e castigado convenientemente. Se essas obrigações onerosas eram exigidas e observadas substancialmente também na Igreja Insular, na qual estavam em vigor rudes costumes entre os seus habitantes, dos quais esses livros nos dão uma viva prova, temos uma ótima demonstração de que o celibato era também possível ali, ainda que, provavelmente, só por uma nobre tradição que ninguém punha em dúvida.
Juntamente com os perigos gerais periódicos que ameaçavam sempre e em toda parte a continência do clero, sempre existiu na história da Igreja momentos, circunstâncias e regiões onde surgiram perigos extraordinários que provocavam de modo muito especial a autoridade da Igreja. As dificuldades desse tipo eram produzidas pelas heresias bastante difundidas. Um exemplo é o arianismo dos visigodos, ainda a operar após a conversão ao catolicismo de seu reino na Península Ibérica. O Concílio de Toledo de 569 e o de Zaragoza em 592 emanaram normas explícitas neste sentido para os clérigos provenientes do arianismo.
  1. A Reforma Gregoriana
Uma das mais graves crises que afetou a continência do clero foi a que se deu em todas as regiões da Igreja Católica Ocidental, afetadas pelas desordens que levaram à Reforma Gregoriana. Essas regiões eram aquelas partes da Europa onde tinha penetrado, com maior ou menor difusão, o chamado sistema beneficial eclesiástico, que, basicamente, dominou toda a vida pública e, mais tarde, também a vida privada da Igreja e da sociedade eclesiástica.
Os bens patrimoniais do benefício eclesiástico, que estavam ligados a todos os ofícios da Igreja, altos ou baixos, conferiam ao detentor do benefício, e portanto também do ofício, uma grande independência econômica e, por isso, freqüentemente profissional, uma vez que o ofício que acompanhava ao benefício não se podia retirar facilmente. A concessão do benéfico-ofício, que vinha realizada com frequência através de leigos que possuíam esse direito – proveniente da Igreja em sentido estrito ou lato – situava nos ofícios eclesiásticos de bispos, abades e, inclusive, de párocos, a candidatos com freqüência pouco preparados e, até mesmo, indignos. A concessão e a designação dos ofícios por parte de leigos poderosos, que nesse assunto atendiam mais aos interesses seculares e profanos que aos espirituais e religiosos da Igreja, conduziam aos outros dois males fundamentais: a simonia, ou seja, a compra dos ofícios, e o nicolaísmo, isto é, a estendida violação do celibato eclesiástico.
Após o fracasso das reformas regionais, os Papas começaram a enfrentar essa situação difícil da Igreja Européia. Conseguiram, devido ao empenho de Gregório VII, enfrentar este grave perigo que tinha envolvido a hierarquia da Igreja em todos os seus graus.
Assim, esse perigo levou a um impulso decidido para a reintegração da antiga disciplina celibatária; para isso foi necessário cuidar especialmente da eleição e da formação dos candidatos ao sacerdócio, para o qual se limitava cada vez mais a aceitação de homens casados, buscando, assim, o retorno a uma observância geral da obrigação da continência.
Outra consequência importante dessa reforma é a disposição, solenemente declarada no segundo Concílio de Latrão do ano de 1139, de que os casamentos contraídos pelos clérigos maiores, como também os das pessoas consagradas mediante votos de vida religiosa, não só eram ilícitos, mas também inválidos. Isto levou a um grande equívoco difundido ainda hoje: o de que o celibato eclesiástico foi introduzido somente a partir do Concílio Lateranense II. Na realidade, ali só se afirmou que era inválido o que sempre tinha sido proibido. Esta nova sanção confirmava, de fato, uma obrigação existente há muitos séculos.
  1. O Celibato no direito canônico clássico.
Quase ao mesmo tempo que começou a vida e a atividade do direito da Igreja, o monge camaldulense, João Graciano, compôs, aproximadamente em 1142, em Bolonha, seu “Concórdia discordantium canonum”, em seguida simplesmente chamado de “Decreto de Graciano”, no qual foi recolhido todo o material jurídico do primeiro milênio da Igreja e harmonizou, pelo menos tentou fazê-lo, as mais variadas normas. Com ele começava a escola do Direito da Igreja, associada a sua paralela do Direito Romano, e que será chamada de escola dos glossistas ou glossadores, ou seja, dos intérpretes das compilações do Direito Eclesiástico (e do Direito Romano) e dos seus textos legais.
O decreto de Graciano trata também, naturalmente, a questão e a obrigação da continência dos clérigos, especificamente, nas distinções 26 – 34 e mais adiante nas distinções 81 – 84, da primeira parte. O mesmo irá acontecer também em outras partes do Corpus Juris (Canonici), que desde então vai se formando com a promulgação das respectivas leis.
Para compreender corretamente as explicações que os canonistas deram dessas leis, devemos considerar que, tal como os seus colegas romanistas, não realizaram as investigações e estudos histórico-jurídicos, o que só ocorreu mais tarde na escola dos cultos, ou seja, na escola jurídica humanística dos séculos XVI em diante. Não devemos, portanto, nos surpreender que os glossadores, ou seja, a escola jurídica clássica, haja desconhecido – também no domínio da canonística – uma crítica em sentido próprio das fontes e dos textos.
Isso é importante para o nosso assunto, pois ao falar de Graciano, imediatamente encontramos o fato de que na questão do celibato eclesiástico, aceitou como algo realmente ocorrido no Concílio de Nicéia a fábula história de Pafnucio, e a assumiu, acriticamente, junto com o cânon 13 do Concílio Trullano II de 691, a diferença da práxis celibatária da Igreja Ocidental e da Oriental. Embora essa não fosse uma ocasião para ele justificar a razão das diferentes práticas da Igreja Latina, tanto ele como a escola clássica de Direito Canônico, colocam a atenção no motivo da diferente obrigação na questão da continência do clero maior oriental. Voltaremos a falar desse diferente tratamento histórico do celibato na Igreja Oriental.
Temos de dizer agora, no entanto, que precisamente devido a essa negligência crítica às dúvidas já existentes no Ocidente sobre esse assunto, e que Gregório VII e outros reformadores, incluindo especialmente Bernoldo de Constança, tinham reconhecido, não produziram uma impressão decisiva sobre a escola canonística, que reconheceu também as deliberações do Concílio Trulano II como plenamente válidas para a Igreja Oriental. Nesse mesmo Concílio, como veremos, foi fixada a disciplina celibatária da Igreja Bizantina e das dependentes dela.
No entanto, como já mencionamos, não existia entre os canonistas medievais nenhuma dúvida sobre a obrigação para a Igreja Ocidental da continência de todo o clero maior. E isso, na verdade, porque conheciam bem os documentos dos Concílios ocidentais, os já tratados anteriormente, sobretudo dos Concílios africanos (Graciano, no entanto, não demonstra conhecer o cânon 33 de Elvira), dos Pontífices Romanos e dos Padres. Todos os canonistas estavam, em geral, de acordo com que a proibição do casamento para os clérigos maiores devia ser atribuída aos Apóstolos – tanto ao exemplo deles, como às suas disposições. Alguns atribuíam aos Apóstolos a proibição do uso do matrimônio contraído antes da Ordenação, outros a disposições legislativas posteriores, sobretudo dos Romanos Pontífices, começando por Siríaco. Tentavam explicar as razões sobre as que se baseia tal proibição, ainda que com argumentos em parte contrapostos. Uns a relacionavam com um voto, expresso ou tácito, ou com a Ordem anexa, ou com uma disposição solene da legítima autoridade. Frente à dificuldade de que ninguém pode impor a outro um votum, tratava-se de encontrar a solução na constatação de que não se tentava impor à pessoa, mas somente ao ofício, que trazia anexa esta condição. Que a Igreja pudesse fazê-lo não oferecia nenhuma dúvida a qualquer canonista, que o explicavam com argumentos bem interessantes e convincentes.
A doutrina que mais convence afirma que esta disposição podia ficar unida através de uma lei, sobretudo pontifica à Ordem Sagrada, e que isso era o que realmente tinha sido realizado desde os primeiros tempos da Igreja pelos Concílios e pelos Romanos Pontífices, tanto para o caso dos bispos, como para os sacerdotes e diáconos. No caso dos subdiáconos, só havia sido decidido definitivamente a partir do Papa Gregório I. Nenhum canonista medieval duvidada, por outro lado, que esta obrigação vinculava ilimitadamente desde o momento de sua introdução. É particularmente destacável o fato de que alguns glossadores façam referência explícita, como fontes da obrigação da continência clerical, a normas meramente tradicionais, que já existiam antes de sua prescrição legal, e a que uma obrigação originada por um voto não era dispensável nem mesmo pelo Papa. Por esse motivo se inclinavam pela teoria que punha a causa eficiente da obrigação numa lei, pois o Papa sim podia dispensar de uma lei geral. De todos os modos, um bom número deles era da opinião de que uma dispensa deste tipo podia ocorrer somente em alguns casos particulares e não em geral, porque isso equivalia à abolição de uma obrigação contrária ao status ecclesiae, coisa que nem para o Papa era possível.
Após esta exposição sintética do pensamento dos glossistas sobre o celibato eclesiástico, corretamente entendido, vigente na Igreja, vale à pena mencionar alguns dos mais importantes textos sobre nosso tema, que podem ser considerados especialmente representativos dessa doutrina.
Primeiro devemos mencionar Raimundo de Peñafort. Esse autor compôs também o Liber Extra do Papa Gregório IX (parte central do Corpus Iuris Canonici) e pode, pois, ser considerado como homem de confiança do Papa, e é também representante qualificado da ciência canonística, já então bem madura. No que diz respeito à origem e ao conteúdo da obrigação de continência dos homens casados antes da sagrada Ordenação diz: “Os bispos, sacerdotes e diáconos devem observar a continência também com sua esposa (de antes). Isto é o que os Apóstolos ensinaram com seu exemplo e também com suas disposições, como alguns dizem, para quem a palavra “ensinamento” (Dist. 84, can. 3) pode ser interpretada de maneira diversa. Isso foi renovado no Concílio de Cartago, como na citada disposição Cum in merito do Papa Siríaco”. Depois de resumir outras explicações, se refere Raimundo às razões para a introdução de tal obrigação: “a razão era dupla: uma, a pureza sacerdotal, para que possam obter com toda sinceridade o que com sua oração pedem a Deus” (Dist. 84 , cap. 3 e dict. 1 p. c. 1 Dist. 31); “a segunda razão é que possam orar sem impedimentos (1 Cor 7, 5) e exercer seu ofício, pois não podem fazer as duas coisas: servir à mulher e à Igreja, ao mesmo tempo”.
  1. A continuidade da doutrina da Igreja na Idade Moderna
A contínua vida de sacrifício que implica tão grave compromisso só pode ser vivida se for alimentada por uma fé viva, já que a fraqueza humana é sentida continuamente. A motivação sobrenatural só pode ser entendida de modo permanente com essa fé, sempre conscientemente vivida. Se a fé se esfria, também diminui a força para perseverar; onde a fé morre, morre também a continência.
Todos os movimentos heréticos e cismáticos que apareceram na Igreja são uma renovada demonstração dessa verdade. Uma das primeiras consequências que ocorrem entre os seus seguidores é a renúncia da continência clerical. Não pode, portanto, causar surpresa o fato de que também nas grandes heresias e defecções da unidade da Igreja Católica no século XVI, ou seja, entre os luteranos, calvinistas, seguidores de Zwinglio, ou Anglicanos, a renúncia rápida ao celibato eclesiástico. Os esforços de reforma do Concílio de Trento para restaurar a verdadeira fé e a boa disciplina na Igreja Católica, portanto, deverão também abordar os ataques contra a continência dos ministros sagrados.
Da história deste Concílio já é conhecida, com absoluta certeza, que muitas pessoas, especialmente imperadores, reis, príncipes e mesmo representantes da mesma Igreja, com a boa intenção de recuperar os ministros sagrados que haviam deixado a Igreja Católica, se empenharam em obter uma redução ou uma dispensa desse dever. Mas uma comissão criada pelos Romanos Pontífices para tratar dessa questão, concluiu, considerando toda a tradição precedente, que se devia manter sem comprometer a obrigação do celibato: a Igreja não estava capacitada para renunciar a uma obrigação válida desde seu começo e depois sempre renovada.
Por razões pastorais se deu permissão especial para que na Alemanha e na Inglaterra os sacerdotes apóstatas, depois de renunciar a toda convivência e utilização do casamento, podiam ser absolvidos e reintegrados ao seu ministério na Igreja Católica. Caso rejeitassem o retorno ao clero, podia ser sanada a invalidez de seu matrimônio; mas, nesse caso, seriam excluídos para sempre do ministério sagrado.
Note-se também que os Padres do Concílio de Trento, não só renovaram todas as obrigações nesta matéria, mas também se recusaram a declarar a lei do celibato da Igreja Latina como uma lei puramente eclesiástica, da mesma forma que haviam negado incluir à Virgem Maria sob a lei universal do pecado original.
Mas a decisão mais radical do Concílio de Trento para salvaguardar o celibato eclesiástico foi a fundação de Seminários para a formação de sacerdotes, que foi estabelecido pelo famoso cânone 18, da Sessão XXIII, e imposta a todas as dioceses. Os jovens deveriam ser eleitos para o sacerdócio, formados e fortalecidos para o ministério nesses Seminários.
Essa decisão providencial, que se tornou realidade progressivamente em todos os lugares, permitiu à Igreja contar com tantos candidatos celibatários para os graus superiores do sagrado ministério, que, a partir de então, se pode ir prescindindo de ordenar homens casados, o que tinha sido um desejo explícito de muitos Padres conciliares.
Desde então, a noção de celibato até então dominante e muito presente na mentalidade dos fiéis, que incluía tanto a obrigação de continência completa no uso do matrimônio contraído antes da ordenação, bem como a proibição de se contrair novas núpcias, foi restringida a esta última. Daí procede que hoje se entenda o dever do celibato eclesiástico só como proibição de se casar.
A Igreja tem sido sempre forte em preservar a sua tradição em relação ao celibato, mesmo nos tempos difíceis que se seguiram. Um claro testemunho é fornecido pela Revolução do final do século XVIII e início do século XIX. Também se adotou nesta ocasião a prática do século XVI: os sacerdotes que tinham se casado durante a Revolução tinha de decidir: ou renunciar ao matrimônio civil invalidamente contraído, ou procurar sanar esta invalidez na Igreja. No primeiro caso, podiam ser readmitidos ao sagrado ministério; no segundo, ficavam excluídos definitivamente do ministério, como já havia estabelecido a primeira lei escrita sobre essa matéria, que já conhecemos: a do Concílio de Elvira.
A Igreja se opôs também a todas as outras tentativas feitas para abolir o celibato dos ministros sagrados, como os esforços feitos em Baden-Wurttemberg em tempos de Gregório XVI, ou o movimento Jednota da Mohêmia em tempos de Bento XV.
É novamente importante a abolição imediata do celibato entre os “velhos católicos” após o Concílio Vaticano I. Não é menos clara a oposição da Igreja contra as tentativas, constantemente renovadas após o Concílio Vaticano II, de ordenar a viri probati, quer dizer, homens casados sem exigir-lhes a renúncia ao matrimônio, ou de permitir o matrimônio dos sacerdotes.


IV. O CELIBATO NA DISCIPLINA DAS IGREJAS ORIENTAIS.


Foi dirigida contra a Igreja Latina a crítica de que contra uma suposta atitude mais liberal no início, foi evoluindo a posições cada vez mais severas na sua disciplina celibatária. Como prova desta afirmação se apela para a prática da Igreja Oriental, que teria mantido a original disciplina da Igreja primitiva. Por esta razão, se diz, a Igreja Latina deveria retornar à disciplina original, especialmente por causa do grave peso que o celibato é hoje para a situação pastoral da Igreja universal.
A resposta a esta declaração e às correspondentes propostas depende da verdade ou não dessa condição da Igreja primitiva. O resultado da análise histórica que temos feito sobre a prática real celibatária no Ocidente, suscita sérias dúvidas sobre a suposta exatidão de tal parecer. Devemos, portanto, procurar uma clarificação do verdadeiro desenvolvimento do celibato na Igreja Oriental. E é isso que tentamos fazer nesta quarta parte da nossa exposição.
  1. O testemunho de Epifânio de Salamina
Em sua defesa da origem apostólica do celibato, C. Bickell recorreu principalmente a testemunhos orientais. Vamos agora olhar para a história celibatária no Oriente, apenas em linhas gerais, já que não podemos analisar todos os testemunhos disponíveis. Mas de tudo o que se disse até agora (e do que acrescentaremos adiante) podemos ter um panorama aceitável da verdadeira situação naquela Igreja.
Uma importante testemunha é o bispo de Salamina (posteriormente denominada Constância) na ilha de Chipre, Epifânio (315 – 403). Ele é considerado um bom conhecedor e defensor da ortodoxia e da Tradição da Igreja, uma vez que ele viveu quase todo o século quarto. Embora em alguns pontos, especialmente na luta contra as idéias, como na questão de Orígenes, demonstrou um menor zelo, seus testemunhos sobre os fatos e as condições de seu tempo, especialmente sobre questões disciplinares da Igreja, não pode ser facilmente posto em dúvida.
Sobre a questão do celibato, ou continência dos ministros sagrados, faz um típico relato dos acontecimentos. Em sua obra principal, chamado Pananon, escrita na segunda metade do século IV, afirma que Deus mostrou o carisma do sacerdócio novo por meio de homens que tinham renunciado ao uso do único casamento antes da Ordenação, ou que sempre viveram virginalmente. Isso, diz ele, é a norma estabelecida pelos Apóstolos com sabedoria e santidade.
No entanto mais importante ainda é a constatação que faz no “Expositio fidei” acrescentada à obra principal. A Igreja, diz ele, apenas admite ao ministério episcopal e sacerdotal (também diaconal) aos que renunciam, através da continência, à sua própria esposa ou ficam viúvos. Assim, continua, se vive onde se mantém fielmente as disposições da Igreja. Pode-se constatar que, em diferentes lugares, sacerdotes, diáconos e subdiáconos continuam gerando filhos. Mas isso não está em conformidade com a norma vigente, mas é uma consequência da debilidade humana, que sempre tende ao que é mais fácil. E depois, segue explicando, os sacerdotes são escolhidos especialmente entre os que são celibatários ou monges. Se entre eles não se encontram suficientes candidatos, são eleitos entre os casados que tenham renunciado ao uso do casamento, ou entre aqueles que, após um único matrimônio, ficaram viúvos.
Estas afirmações de um homem conhecedor de muitas línguas e que viajou muito para o Oriente – dividido já por muitas doutrinas – no primeiro século de liberdade da Igreja são um bom testemunho tanto da norma como da situação real da questão do celibato na Igreja Oriental dos primeiros séculos.
  1. São Jerônimo
A segunda testemunha é já conhecida. São Jerônimo foi ordenado sacerdote na Ásia Menor por volta do ano 379 e ao longo de seis anos conheceu a doutrina e a disciplina oriental, bem como eclesiásticos e comunidades monásticas. Após ter vivido três anos em Roma, ele retornou, através do Egito, à Palestina, onde permaneceu até a sua morte, por volta do ano 420. Esteve sempre em contato estreito e ativo com a vida de toda a Igreja, graças às suas relações com muitos homens importantes do Ocidente e Oriente, e também graças ao seu vasto conhecimento de várias línguas.
Seu testemunho explícito sobre a continência do clero já foram ilustrados na terceira parte. Recordemos agora novamente sua obra Adversus Vigilantium, que, contrariamente àquele sacerdote da Gália meridional que desprezava o celibato, invocou a prática das Igrejas do Oriente, do Egito e da Sé Apostólica, nas que, segundo afirma, só aceitam clérigos virgens, continentes, e, se são casados, que tenham renunciado ao uso de casamento. Com isto conhecemos um testemunho sobre a posição oficial também da Igreja, sobre a continência dos ministros sagrados.
No que diz respeito à legislação dos Sínodos orientais, deve-se salientar que os Concílios regionais anteriores a Nicéia, ou seja, os de Ancira e Neo-Cesaréia e o post-niceno de Gangra, falam efetivamente de ministros casados, mas não nos dão informações confiáveis sobre a licitude de uma vida não continente após a Ordenação, que vai mais além de uma situação excepcional.
Também nos sínodos particulares das diversas Igrejas cismáticas do Oriente, que foram estabelecidas depois das controvérsias cristológicas, nas quais – como no Ocidente – houve um claro afastamento da prática da disciplina celibatária, encontramos assim um testemunho por sua atitude oficial contrária à ortodoxia.
  1. A questão do eremita Pafnucio.
O Concílio de que devemos ocupar mais amplamente, em relação ao nosso tema, é o primeiro Concílio Ecumênico, realizado em Nicéia, no ano 325.
A única disposição sobre o celibato dos ministros neste primeiro Sínodo da Igreja Universal é o cânon 3, que proíbe que aos bispos, sacerdotes, diáconos, e, em geral, todos os clérigos, que tenham em suas casa mulheres, introduzidas ali por subterfúgio. A única exceção é para a mãe, a irmã, a tia e outras que estejam para além de qualquer suspeita. Como sempre, entre as mulheres que estão autorizadas à convivência com os sacerdotes, não se encontram as esposas. O fato de que no primeiro posto dos eclesiásticos sujeitos à proibição de coabitação estavam os bispos – para os quais, na Igreja Oriental, era sempre obrigatória a continência no uso de um casamento anterior (o que continua válido até hoje) – podemos perguntar se entre os Padres do Concílio era firme a convicção de tal obrigação de continência.
Em favor de uma convicção e situação contrária para o caso dos sacerdotes, diáconos e subdiáconos se invoca uma notícia sobre um eremita e bispo do deserto no Egito chamado Pafnucio.  Diz-se que esse personagem teria levantado sua voz no Concílio para dissuadir aos Padres de sancionar uma obrigação geral de continência. Isso deveria ser deixado, segundo sua opinião, para a decisão das Igrejas particulares; e se diz que tal conselho teria sido aceito pela assembleia.
Embora o conhecido historiador da Igreja, Eusébio de Cesaréia, que esteve presente como Padre conciliar e era favorável aos arianos, não se refere a nada deste episódio. Certamente não de menor importância para toda a Igreja, as primeiras notícias do fato nos chegam cem anos depois do Concílio, e através de dois escritores eclesiásticos bizantinos: Sócrates e Sozómeno. Sócrates indica que a sua fonte é um homem muito idoso, que tinha estado presente no Concílio e que teria contado vários episódios sobre fatos e personagens do mesmo. Crê-se que Sócrates nasceu em torno de 380 e escutou essa narração quando ele mesmo era bastante jovem de uma pessoa que no ano 325 não podia ser uma criança, que não pode ser considerado como um testemunho consciente dos eventos do Concílio. Disto podemos concluir facilmente a mais natural crítica das fontes traz sérias dúvidas sobre a autenticidade desta narração, necessitada de garantias mais firmes.
Estas dúvidas, na verdade, já foram levantadas precocemente no Ocidente, como já foi dito, pelo Papa Gregório VII e Bernoldo de Constança. Em tempos mais recentes merece atenção o comentário de Valésio, editor das obras de Sócrates e Sozómeno, que fez esta história em 1668 e que Migne imprimiu em sua Patrologia Grega, vol. 67. O humanista de Valois, membro de uma família de pessoas doutas, diz explicitamente que a história de Pafnucio é suspeita, porque entre os Padres do Concílio provenientes do Egito não aparece tal bispo. E a correspondente passagem de Sozómeno repete que a história de Pafnucio deve ser uma fábula inventada, principalmente porque entre os Padres que assinaram as Atas do Concílio de Nicéia, não existe nenhum com este nome. Na tradução latina de Casiodoro-Epifanio (História Tripartida) deste episódio, é recolhido apenas um fragmento de dezesseis linhas da História da Sozómeno.
Recentemente, o estudioso alemão Friedhelm Winckelmann investigou esse incidente e concluiu que ele foi inventado, pois a referência à pessoa de Pafnucio apareceu mais tarde. O nome dele só aparece em manuscritos tardios das Atas do Concílio, e alguns textos do século IV apenas o conhecem como confessor da fé. Posteriormente algumas lendas hagiográficas o elevaram a mestre e foi citado como Padre do Concílio de Nicéia.
Mas o argumento mais convincente contra a autenticidade desse relato parece residir no fato de que precisamente a Igreja Oriental que deveria ter o maior interesse nele, ou não tinha conhecimento do mesmo, ou não o usou em nenhum documento oficial, por estar convencida da sua falsidade. E o mesmo pode ser deduzido do fato de que não haja qualquer menção ou utilização sobre Pafnucio, tanto nos escritos polêmicos sobre o celibato dos ministros sagrados, como nos grandes comentadores do Século XII – Aristeno, Zonaras, Balsamon – do Syntagma canonum adauctum – ou seja, do códice maior de direito da Igreja Oriental, estabelecido pelo Concílio Trullano de 691. Isso seria, de fato, mais fácil do que recorrer à manipulação de textos históricos bem conhecidos, como veremos adiante.
Será necessário esperar até o décimo quarto século para que apareça o relato no Syntagma alfabetcum, de Mateus Blastares, que, contudo, parece que o considerou interessante para o Oriente só através do Decreto de Graciano. No Ocidente, essa falsificação foi recebida de modo completamente acrítico, ao menos pela canonística, que se baseou, em parte, para reconhecer uma determinada disciplina celibatária particular, diferente da Igreja Oriental. O Concílio Trullano II, ao fixar oficialmente as regras sobre celibato válido na Igreja oriental, não fez qualquer referência a Pafnucio.
  1. A fragmentação do sistema disciplinar no Oriente
Isso leva-nos ao ponto central na história do celibato ministerial na Igreja Bizantina e nas Igrejas Orientais a ela associadas. Algumas considerações preliminares ajudarão a entender a questão corretamente.
Como vimos até agora, um compromisso tão oneroso, humanamente falando, como o celibato, sempre teve que pagar ao longo da história o tributo da debilidade humana. Já Santo Ambrósio de Milão o testemunhou, afirmando que nem sempre correspondia o cumprimento com o preceito, sobretudo nas regiões mais remotas; também no Ocidente, o mesmo assinalava Epifânio de Salamina falando do Oriente. Adverte-se, portanto, com claridade que há uma necessidade de permanente atenção e uma ajuda constante para manter essa prática. No Ocidente, os Concílios regionais e os Papas não cessaram de intervir, exortando à observância do celibato e para sustentá-la em todas as suas formas, garantindo o cumprimento do compromisso assumido, tão necessário para a Igreja.
Tudo indica, porém, que essa atenção constante se perdeu no Oriente. Isso pode ser comprovado, por um lado, pela história dos Concílios regionais orientais. Certamente se pode notar o efeito benéfico dos esforços comuns a toda a Igreja Universal, presentes nos Concílios Ecumênicos convocados no primeiro milênio, no Oriente. Mas esses esforços se referem especialmente a questões dogmáticas e doutrinais. Os problemas disciplinares e de natureza pastoral eram enviados às assembléias das Igrejas particulares, tanto para responder às diferentes circunstâncias das diferentes regiões, como, sobretudo, por razão da organização patriarcal (Constantinopla, Antioquia, Alexandria, Jerusalém). Isso dava, e implicava, certa autonomia de governo, ainda mais acentuada pela separação de muitas Igrejas particulares, vítimas em maior ou menor grau de heresias, especialmente cristológicas, que agitavam o Oriente. Por essa razão, o Oriente como tal, não pode chegar a uma atitude sistematicamente concordada em questões disciplinares, nem sequer sobre questões comuns de disciplina geral eclesiástica, como o celibato dos ministros sagrados. Cada Igreja particular emanava suas próprias regras, muitas vezes diferentes, em função da diversidade de convicções.
Faltava, portanto, uma autoridade universal, reconhecida como tal por todo o Oriente, que poderia proporcionar uma efetiva coordenação da disciplina geral e que poderia tomar medidas eficazes de controle, vigilância e execução.
Esta situação se reflete claramente naquelas recopilações de normas da Igreja Oriental, que contêm as prescrições dos Concílios Ecumênicos e dos Concílios particulares dos primeiros séculos. Mas a legislação dos séculos sucessivos não foi incluída na recopilação comum formada anteriormente, o Syntagma canonum. Em lugar das disposições papais, que foram tão importantes para a coordenação geral da disciplina no Ocidente, foram recolhidos fragmentos de textos dos principais Padres Orientais, que eram por natureza ascética. Também foram recolhidas leis imperiais em matéria eclesiástica, fruto do cesaro-papismo reinante na Igreja Bizantina, que eram realmente normas vinculantes que davam certa uniformidade nos pontos disciplinares de que tratavam.
Da disciplina ocidental, tanto particular como geral, o Oriente aceitou, na sua recopilação mais comum de direito eclesiástico, apenas a da Igreja Africana que era mais conhecida e mais próxima, ainda que pertencia ao Ocidente romano. Além disso, a coleção mais importante e extensa, o Codex canonum ou Codex canonum Ecclesiae africanae in causa apiarii – causa na que tinha sido interpelado o Oriente – foi introduzido no seu Syntagma.
Pela posição e influência exercida no Oriente pelos imperadores, existem os chamados Nomocanones, recopilações nas quais eram reunidas leis eclesiásticas e leis estatais de matéria eclesiástica; a observância dessas leis nos territórios orientais da Igreja, que ainda estavam sujeitos ao imperador, estava sob a responsabilidade deste.
Com tal situação na Igreja oriental, se explica também a falta de uma ação eficaz geral contra a tentação sempre presente de ceder na observância do dever do celibato dos ministros sagrados. O que se manteve em quase todo o Oriente, pelo menos para os bispos, foi a antiga tradição da continência completa, incluindo aqueles que se tinham casado antes da Ordenação, pois muitos haviam sido eleitos entre os monges. Entretanto se foi lentamente julgando impossível deter o uso, cada vez mais estendido, do matrimônio contraído antes da Ordenação por parte de sacerdotes, diáconos e subdiáconos, e, ainda muito menos recuperável, a obrigação da continência completa. Isso significa que, de fato, se cedeu ante a situação.
Não se deve surpreender de que as primeiras leis que sancionaram esta situação foram leis imperiais, posto que, não inspiradas certamente em considerações teológicas, tratavam de regular as condições civis concomitantes com o ministério sagrado. De fato, enquanto o Código Teodosiano (ano 434) mostrou que a continência pode ser guardada, ainda que se permita à mulher habitar com o marido também depois da Ordenação, pois o amor à castidade não exige expulsá-la de casa (sempre que o comportamento dela antes da Ordenação do marido tenha demonstrado que ela é digna dele), a legislação do Imperador Justiniano I em matéria eclesiástica, por sua parte, tanto no Código (ano 534) como nas “Novellae” (535-536), manifesta uma atitude diversa. Ainda se mantém a proibição de admitir na Ordem sagrada ao que se tivesse casado mais de uma vez, assim como a de casar-se depois da Ordenação, e isto para todos os graus, desde o sub-diaconado em diante. Mas agora se permite a coabitação com a esposa aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos com o fim de que possam continuar usando do matrimônio, sempre que houvesse sido contraído uma só vez e com uma virgem.
  1. A Legislação do II Concílio Trullano.
Qual foi, então, a legislação da própria Igreja Oriental frente às essas disposições imperiais? Como já foi referido, no Oriente há uma atividade que é desenvolvida em conjunto com a Igreja Ocidental sobre questões de fé, mas nunca chegou a uma legislação comum em matéria disciplinar.
Uma vez que o Concílio Trullano I, dos anos 680/81, não tinha emitido disposições disciplinares, o imperador Justiniano II convocou um segundo Concílio “em Trullo”, no Outono de 690. Nele se tentou reunir toda a legislação disciplinar da Igreja bizantina, e decidir as necessárias atualizações e complementos, incluindo a legalização de situações carentes, de fato, do necessário suporte normativo. Isso foi feito através da promulgação de 102 cânones, que foram acrescentados mais tarde ao antigo Syntagma adauctum, transformando-se dessa forma no último Código da Igreja Bizantina.
Toda a disciplina atualizada no que respeita ao celibato foi fixado de forma vinculativa e com sanções adjuntas em sete cânones (3, 6, 12, 13, 26, 30, 48). Este Concilio II “em Trullo”, também chamado Quinisexto, foi um Concílio da Igreja Bizantina, convocado e frequentado somente por seus bispos e mantido pela sua autoridade, que se apoiava de modo decisivo na autoridade do imperador. A Igreja Ocidental não enviou delegados (embora Apocrisário, o legado de Roma em Constantinopla, assistiu a esse Concílio) e nunca reconheceu este Concílio como ecumênico, apesar das repetidas tentativas e pressões, especialmente por parte do imperador. O Papa Sérgio (687-701), que procedia da Síria, negou o reconhecimento. João VIII (872-882) só reconheceu as disposições que não eram contrários à prática de Roma em vigor até aquele momento. Qualquer outra referência por parte dos Romanos Pontífices aos cânones “trullanos” não deve ser considerada como outra coisa além de uma consideração, com um reconhecimento mais ou menos explícito do direito particular da Igreja Oriental.
Então, de que fontes derivam as decisões “trullanas” sobre disciplina celibatária bizantina, vinculantes até hoje? Para responder adequadamente a esta pergunta, é necessário considerar antes tais disposições.
Cân. 3: Decide que todos os que depois do batismo tenham contraído um segundo matrimônio ou tenha vivido em concubinato, bem como aqueles que se tinham casado com uma viúva, uma divorciada, uma prostituta, uma escrava ou uma atriz, não poderiam tornar-se nem bispos, nem sacerdotes, nem diáconos.
Cân.  6: Declara que aos sacerdotes e diáconos não estão autorizados a se casar após a Ordenação.
Cân. 12: Ordena que os bispos não podem, após a Ordenação, coabitar com sua esposa e, por conseguinte, não podem mais usar do matrimônio;
Cân. 13: Estabelece que, ao contrário da prática romana que proíbe o uso do matrimônio, os sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja oriental, em virtude de antigas prescrições apostólicas, podem conviver com suas esposas e usar dos direitos do casamento para a perfeição e ordem correta, exceto nos tempos em que prestam o serviço no altar e celebram os sagrados mistérios, devendo ser continentes durante este tempo. Esta doutrina havia sido afirmada pelos Padres reunidos em Cartago: “os sacerdotes, diáconos e subdiáconos devem ser continentes durante o tempo do seu serviço ao altar, tendo em vista o que foi transmitido pelos Apóstolos e observado desde os tempos antigos também nós o custodiemos, dedicando um tempo para cada coisa, especialmente à oração e ao jejum. Assim, pois, os que servem no altar devem ser em tudo continentes durante o tempo do seu serviço sagrado para que possam obter o que se pedem a Deus com toda simplicidade.” Portanto quem ouse privar mais além do que estabelece os cânones apostólicos, aos ministros in sacris, quer dizer, aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos, da união e comunhão com as legítimas esposas, deve ser deposto, bem como aquele que, sob o pretexto de piedade, expulsa à sua esposa e insiste na separação.
Cân. 26: Decreta que um sacerdote que por ignorância houvesse contraído casamento ilícito tem de se conformar com a sua situação anterior, mas abstendo-se de todo ministério sacerdotal. Esse matrimônio deve ser dissolvido e toda a comunhão com a esposa está proibida.
Cân. 30: Permite que os que, com consentimento mútuo, querem viver continentes, não devem habitar juntos; isso é válido também para os sacerdotes que residem em países bárbaros (isso é entendido como os que vivem no território da Igreja Ocidental). Esse compromisso assumido é, no entanto, uma dispensa dada a esses sacerdotes por sua pusilanimidade e pelos costumes das pessoas ao redor.
Cân.: 48: Manda que a mulher do bispo que, após consentimento mútuo, se separou, deve ingressar num mosteiro depois da Ordenação do marido e deve ser mantida por ele. Pode também ser promovida à diaconisa.
Dessas disposições conciliares resulta o seguinte: o Oriente conhece bem a disciplina celibatária do Ocidente. Apela, como no Ocidente, como apoio à prática diferente, a uma tradição que remontaria até os Apóstolos. De fato, a Igreja Bizantina concorda na legislação trullana com a Igreja Latina nos seguintes pontos, que como no Ocidente, se fundamenta nos textos sagrados do Novo Testamento: o casamento antes da sagrada Ordenação deve ter ser apenas um, e não com uma viúva ou com outras mulheres que a lei exclui. Não é legítimo um primeiro ou sucessivo casamento após a Ordenação. Os bispos não podem mais ter convivência matrimonial com a esposa, mas devem viver em plena continência, e por isso as mulheres não podem viver com eles, mas devem ser mantidas pela Igreja. O Oriente exige ainda o ingresso das esposas num mosteiro ou a ordenação dessas como diaconisas.
A diferença substancial da prática da Igreja Oriental se refere só aos graus da Ordem sagrado inferiores ao episcopado. Para estes, a abstenção do uso do matrimônio se exige somente durante o tempo do serviço efetivo no altar, que então estava limitado ao domingo ou a outro dia da semana.
Encontramos aqui, portanto, uma volta à pratica vigente no Antigo Testamento que a Igreja havia rejeitado sempre explicitamente com razões claras. Pelo contrário, a convivência e o uso do matrimônio durante o tempo livre do serviço direto não somente é defendido aqui com grande resolução, mas que qualquer atitude contrária é castigada com gravíssimas sanções. A compreensível exceção para os sacerdotes que residem na Igreja latina é declarada como uma dispensa que se concede só por causa da evidente debilidade humana de tais sacerdotes e pelas dificuldades que provém do ambiente, entre as quais está certamente o fato da geral prática de continência do clero ocidental.
  1. Motivos da nova disciplina adotada: a mudança dos textos
Os Padres do Concílio II Trullano não podiam encontrar nos seus documentos motivos para a distinção entre as duas posições. Provavelmente não queriam fazer referência ao Antigo Testamento porque, como já vimos, nos argumentos ocidentais e, sobretudo nas disposições dos Romanos Pontífices a favor da completa continência, se rejeitava explicitamente e com razões convincentes este paralelismo como inadequado em relação ao sacerdócio do Novo Testamento. Mas tinham menos motivos ainda para apelar à legislação imperial que havia antecipado às decisões eclesiásticas ante uma situação possivelmente já generalizada.
Posto que em Constantinopla tivesse consciência da falsidade do relato de Pafnucio, não restava mais possibilidade para recorrer a testemunhos da antiguidade cristã, que não procedesse da Igreja de Constantinopla, mas de uma Igreja vizinha à deles, cujos cânones disciplinares tinham sido já incluídos no próprio Código geral. Assim havia sucedido com os cânones do Código africano que tratavam expressamente da continência clerical e também faziam referência aos Apóstolos e à tradição antiga da Igreja.
Uma vez que tais cânones afirmavam a mesma disciplina, isto é, da completa continência, para bispos, sacerdotes e diáconos, devia ser modificado o texto autêntico dos cânones africanos. Não era algo perigoso, pois no Oriente realmente muito poucos podiam verificar o latim genuíno do texto original.
Deste modo as palavra do cânon 3 de Cartago: “gradus isti tres (…) episcopos, presbyteros et diaconos (…) continentes in omnibus”, foram substituídos no cânon 13 do Concílio Trullano por estas outras: “sub­diaconi (…) diaconi et presbyteri secundum easdem rationes a consorti­bus se abstineant”, sendo que as palavras “easdem rationes”, opostas às palavras do texto original de Cartago, representavam as mudanças introduzidas pelos Padres trullanos.
Mas em todos estes textos, documentalmente manipulados, se conserva, ou melhor, se busca a referência aos Apóstolos e à Igreja antiga para dar ao celibato bizantino e oriental, através destes testemunhos autorizados, o mesmo fundamento que tinha a tradição ocidental, explicitamente indicado por ela em Cartago e noutros lugares.
Que podemos dizer diante deste procedimento trullano? Os Padres orientais se sentiam, não há dúvidas, autorizados para decretar disposições particulares para a Igreja Bizantina, posto que desde muito tempo antes haviam insistido em sua autonomia jurídica no âmbito da administração e da disciplina. Somente se sentiam obrigados pelas decisões doutrinais da Igreja universal estabelecidas em Concílios Ecumênicos nos quais também eles tinham participado. Pode-se, desde já, reconhecer naqueles Padres – que estabeleciam as normas de validade geral na sua Igreja – o direito de levar em conta só a situação de fato na questão do celibato dos ministros sagrados, para a que viam possibilidade de reforma frutuosa. Que isso fosse possível em um campo no que, como o caso do celibato, está implicada a Igreja Universal é outra questão. Mas o que sem dúvida podemos negar é o direito a fazê-lo com este método, ou seja, mediante uma manipulação dos textos que transforma a verdade na sua contrária.
Para a Igreja Católica Ocidental, esta atitude dos Padres trullanos pode ser considerada com uma prova a mais, e não sem importância, a favor da própria tradição celibatária, que se considera apostólica e se fundamenta realmente sobre uma consciência comum à Igreja Universal antiga; por isso a tradição celibatária ocidental deve ser considerada verdadeira e justa.
Devemos ainda nos perguntar o que diz a história sobre essa mudança dirigida a obter uma base de apoio para as novas e até agora definitivas obrigações do celibato na Igreja Oriental. Os comentários dos canonistas da Igreja Bizantina a essa leitura dos cânones africanos permitem compreender que conheciam o texto original autêntico, e que desde o século XVI em adiante – como, por exemplo, o comentário de Mateo Blastares – recolhiam dúvidas sobre a exatidão das referências dos Padres do Concílio Trullano II aos textos africanos. Os intérpretes modernos das disposições trullanas sobre o celibato admitem a inexatidão das referências, mas ao mesmo tempo afirmam que o Concílio tinha autoridade para mudar qualquer lei disciplinar para a Igreja Bizantina, e para adaptá-la às condições dos tempos. Fazendo uso desta autoridade podiam também mudar o sentido original dos textos para fazê-los concordar com o parecer e a vontade do próprio Concílio. Mas com toda certeza não era objetivamente lícito alterar o original atribuindo a esse uma autenticidade falsa.
A historiografia do Ocidente reconheceu há muito tempo e se manifestou também por escrito desde o século XVI a manipulação feita pelo Concílio Trullano II sobre os textos africanos referidos à continência dos ministros sagrados. Cito, por exemplo, a Barônio e, sobretudo, aos editores das diversas coleções de textos conciliares, entre os quais se destaca J. D. Mansi.
Falta-nos ainda fazer uma referência às marcas da genuína disciplina celibatária antiga que permaneceu até nossos dias na nova disciplina trullana, quer dizer, à constante preocupação da Igreja pelo perigo grave e contínuo para os ministros sagrados e sua continência, que é a coabitação com mulheres que estejam acima de qualquer suspeita. Seguindo ao já referido cânone 3 do Concílio de Nicéia, de 325, os mesmos cânones trullanos, examinados anteriormente, tratam dele repetidamente. Semelhante preocupação se deve somente pela solicitude geral para salvaguardar a castidade e a continência dos ministros sagrados em ambas as Igrejas.
O fato de haver conservado para os bispos da Igreja Oriental a mesma severa disciplina sobre a continência que se praticou sempre em toda a Igreja, pode ser considerada como um resíduo na legislação trullana de uma tradição que sempre considerou unidos a todos os graus da Ordem Sagrada numa mesma obrigação de completa continência.
Também não se compreende porque se conservou, com todo rigor, na Igreja Oriental a condição de admitir um único matrimônio entre os candidatos ao sacerdócio casados. Como já vimos (e veremos mais detalhadamente) essa condição tem só um significado razoável em função de um empenho definitivo na continência completa.
É ainda pouco compreensível a proibição absoluta de se contrair matrimônio depois da sagrada Ordenação, que se mantém ainda quando aos ministros sagrados, desde o sacerdote até abaixo, lhes está permitido o uso do matrimônio.
Ao que se refere às inovações oficialmente introduzidas pelo Concílio Trullano na questão da continência dos clérigos, que reconduzem o conceito neo-testamentário do ministro sagrado ao conceito levítico do Antigo Testamento, devemos nos perguntar como se podia continuar fazendo isso quando o serviço efetivo do altar se estendeu, também na Igreja Oriental, a todos os dias da semana. Se fossem consideradas as razões adotadas para o uso do matrimônio por parte dos sacerdotes vetero-testamentário, deveria ter voltado à completa continência dos sacerdotes, diáconos e subdiáconos tal como se praticava no Ocidente, em atenção às disposições do mesmo Concílio Trullano. Mas isso não se fez em nenhuma parte e desse modo o serviço do altar e o ministério do Santo Sacrifício foram desligados da continência, apesar de que sempre haviam estado unidos a ela, pois eram considerados seu motivo último.
Nas Igrejas particulares unidas à Bizantina, que aceitaram a disciplina trullana, não se verificou nos séculos seguintes nenhuma mudança na práxis do celibato dos ministros sagrados. Às comunidades orientais que se uniram a Roma foi concedido po­der de continuar na sua tradição celibatária diferente. Mas o retorno dos “uniatas” à práxis latina de continência completa não só não encontrou oposição, mas também foi positiva e favoravelmen­te aceita. O reconhecimento da diversidade de disciplina conce­dido pelas autoridades centrais de Roma pode ser considerado como um nobre respeito, mas dificilmente como aprovação oficial da mudança da antiga disciplina da continência. Essa opinião pa­rece estar sustentada pela reação oficial que teve a Santa Sé frente ao Concílio Trullano II, como já assinalamos anteriormente.


V. FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA DISCIPLINA DO CELIBATO:


No atual debate sobre celibato, se dá maior ênfase na necessidade de aprofundar teologicamente no sacerdócio a fim de deduzir a verdade e apreciar a verdade única e completa da teologia do celibato da Igreja Católica Latina.
Temos, portanto, por esse motivo, a tarefa atual e importante de analisar os elementos teológicos tanto do sacerdócio do Novo Testamento como, a partir deste, o celibato dos ministros sagrados. Ambos têm suas raízes nas Escrituras – a principal fonte da Teologia católica – e na Tradição da Igreja que revela e interpreta o testemunho escriturístico.
O sacerdócio de Jesus Cristo é um profundo mistério da nossa fé. Para compreender isso, o homem deve se abrir para uma visão sobrenatural e submeter a sua razão a um modo transcendente de pensar. Em tempos de fé viva, que incentiva e orienta não só a cada fiel como pessoa única, mas também permeia a vida e dá forma à vida de toda a comunidade crente, Cristo Sacerdote constitui na consciência de todos o centro da vida de fé pessoal e comunitária. Em tempos de declínio do sentido da fé, pelo contrário, a figura de Cristo Sacerdote desbota e desaparece cada vez mais da consciência dos homens e da sociedade, e não está mais no centro da vida cristã.
Esta mesma imagem é também aplicável no caso de um sacerdote de Cristo. Em tempos de fé viva, na verdade não é difícil ao sacerdote reconhecer-se em Cristo, identificar-se com Ele, contemplar e viver a essência do próprio sacerdócio em íntima união com Cristo Sacerdote, ver nele “a única fonte” e o “modelo insubstituível” da própria condição sacerdotal.
Mas, em meio a uma atmosfera racionalista que desvia cada vez mais a mente humana do sobrenatural, em uma época de materialismo que obscurece cada vez mais a realidade espiritual, torna-se cada vez mais difícil para o sacerdote resistir à pressão da mentalidade secularizante. A identidade espiritual e transcendente de seu sacerdócio tende a desvanecer se ele não se esforça, conscientemente, em aprofundar nela e em mantê-la viva, por meio de uma íntima união pessoal com Cristo.
Essa crítica situação torna ainda mais indispensável a ajuda para os sacerdotes de uma ascética e de uma mística adequadas ao estado das coisas. É preciso que lhes revelem a tempo os perigos que ameaçam ao seu sacerdócio, mostrando-lhes as necessidades e que se ponham à disposição os meios que a sua vida sacerdotal requerem. A atual crise de identidade do sacerdócio católico se manifesta toda sua crueza através da renúncia de milhares de sacerdotes ao seu ministério, através também da profunda secularização de muitos outros que continuam em um serviço puramente formal, e, enfim, através da escassez de vocações causadas pela rejeição a seguir ao chamado de Cristo. Numa situação desse tipo é uma necessidade fundamental para desenvolver uma pastoral sacerdotal nova, que seja consciente das circunstâncias e das exigências atuais e que responda, em uma palavra, ao “contexto presente”.
  1. A relação sacerdotal com Cristo
Temos de fazer brilhar com nova luz sobre o fundamento da tradição, a essência do sacerdócio católico. O Concílio de Trento, em um momento de crise semelhante ao nosso, estabeleceu com os seus ensinamentos e definições sobre os sacramentos da Eucaristia e da Ordem, as bases de uma espiritualidade sacerdotal fortemente referida a Cristo. Um teólogo como M. J. Scheeben soube explicar, frente ao racionalismo do século passado, que a Ordenação eleva a quem a recebe a uma orgânica unidade sobrenatural com Cristo, e que o caráter indelével impresso pelo sacramento da Ordem habilita ao ordenado para participar nas funções sacerdotais de Cristo.
Nos últimos tempos, especialmente desde o Vaticano II em diante, esta relação do sacerdote com Cristo tem sido cada vez mais posta no centro da essência do sacerdócio, e se pôde aprofundar e alargar desde essa perspectiva os ensinamentos bíblicos e as doutrinas teológicas e canônicas sobre o assunto. Tem, assim, adquirido uma nova iluminação teológica a doutrina tradicional do sacerdos alter Christus.
Se São Paulo escreve aos coríntios: “Temos de ser considerados pelos homens como ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1); ou então: “Agimos como embaixadores de Cristo, como se Deus mesmo vos exortasse através de nós. Suplicamos-vos, pois, em nome de Cristo, deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Cor 5, 20), essas expressões podem ser consideradas como autênticas ilustrações bíblicas da identificação do sacerdote com Cristo.
No Concílio Vaticano II é continuamente expressa a mesma idéia: “Os bispos, de modo eminente e visível, façam às vezes de Cristo Mestre, Pastor e Pontífice, e atuem em sua pessoa” (Lumen Gentium n º 21, com a nota 22, onde se documenta sobre a Igreja antiga). “Os sacerdotes a eles unidos são partícipes do ofício de Cristo, único Mediador, e exercitam o seu sagrado ministério agindo in persona Christi (Lumen Gentium n. 28 com a nota 67; Christus Dominus n. 28). Através do sacramento da Ordem e do caráter por ele impresso, são configurados a Cristo e atuam em seu nome (Presbyterorum Ordinis nn. 2, 6, 12; Optatam totius n. 8; Sacrosanctum Concilium, n. º 7).
Após o Concílio aumentou essas formas de expressão também por parte da Cúria Romana. A Congregação para a Educação Católica, nas normas fundamentais para a formação dos sacerdotes de 1970, acentuou em uma afirmação de princípio que o sacerdote se faz, através da Ordem Sagrada, um “alter Christus”. E o novo Código de Direito Canônico de 1983 diz no cânon 1008: “Com o sacramento da Ordem e com o caráter indelével com o que ficam marcados aqueles que o recebem, os ministros da Igreja são consagrados e destinados a reunir-se, cada um no seu próprio nível, os cargos de ensinar, santificar e governar in persona Christi e de pastorear o povo de Deus.”
De uma forma ainda mais intensa, tem se ocupado do sacerdócio e do ministério dos sacerdotes, desde o início do seu pontificado, o atual pontífice, João Paulo II. Desde 1979, nas Quintas-Feiras Santas de cada ano, dirige uma mensagem aos sacerdotes. Em repetidas vezes utiliza ocasiões especialmente adequadas – audiências, discursos e, especialmente, as freqüentes ordenações sacerdotais – para posicionar na sua justa luz teológica e pastoral atual, a natureza e a essência do sacerdócio católico, bem como a aprofundar o seu significado.
O mais importante ato oficial do Papa, com referência ao sacerdócio foi, sem dúvida, a convocação e a realização do Oitavo Sínodo dos Bispos, que teve por objetivo a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais. Um dos pontos centrais das discussões dos Padres sinodais foi a noção justa da identidade sacerdotal, vistas as coisas no mundo de hoje e em meio a grave crise em que se encontra o sacerdócio católico. Síntese e coroação dos trabalhos sinodais foi a Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, publicada em 25 de março de 1992, dedicada precisamente à formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais.
No segundo capítulo da Exortação Apostólica, o Papa aborda a “natureza e a missão do sacerdócio ministerial” e informa expressamente que as intervenções dos Padres na aula sinodal “mostrou a consciência do vínculo ontológico específico que liga o sacerdote a Cristo, Sumo Sacerdote e Bom Pastor” (n. 11). O Papa conclui essa exposição com uma afirmação verdadeiramente clássica: “O presbítero encontra a plena verdade da sua identidade no ser uma derivação, uma participação específica e uma continuação do mesmo Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote da Eterna Aliança; Ele é uma imagem viva e transparente de Cristo sacerdote. O sacerdócio de Cristo, expressão da sua absoluta “novidade” na história da salvação, é a única fonte e o paradigma insubstituível do sacerdócio do cristão, e, especialmente, do presbítero. A referência a Cristo, então, é a chave essencial para a compreensão das realidades sacerdotais” (n.º 12, ao final).
Sobre a base desta afinidade natural entre Cristo e os seus sacerdotes não será difícil anunciar a teologia do sacerdócio ministerial. O mesmo João Paulo II oferece-nos novamente a chave: “É particularmente importante que o sacerdote compreenda a motivação teológica da lei eclesiástica sobre o celibato. Enquanto lei, ela expressa a vontade da Igreja, antes mesmo da vontade que o sujeito manifesta com a sua disponibilidade. Mas essa vontade da Igreja encontra sua motivação última na relação que o celibato tem com a ordenação sagrada, que configura ao sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja. A Igreja, como esposa de Jesus Cristo, quer ser amada pelo sacerdote de modo total e exclusivo como Jesus Cristo Cabeça e esposo a tem amado. Assim o celibato sacerdotal é um dom de si em e com Cristo à sua Igreja, e manifesta o serviço do sacerdote à Igreja em e com o Senhor “(n.º 29 até o final).
  1. Fundamento histórico doutrinal
Um olhar para trás na Tradição da Igreja pode nos informar, também nesta ocasião, o desenvolvimento dessa Teologia. O que se pode dizer, em síntese, sobre esse aspecto, já dissemos em parte, ao analisar os testemunhos da Igreja Primitiva sobre a continência dos ministros sagrados. Continuar com as referências históricas sobre o celibato, as referências à Sagrada Escritura e sua interpretação é certamente uma ajuda que pode ser fornecida à argumentação teológica dos Padres sinodais e do Santo Padre, porque na Exortação Apostólica abunda as referências à Sagrada Escritura. A visão do celibato, do ponto de vista das Escrituras adquiriu, por outro lado, uma crescente importância na literatura recente sobre o assunto.
Já na primeira lei escrita que conhecemos, no cânon 33 do Concílio de Elvira, estão obrigados à continência os clérigos positi in ministerio, ou seja, aqueles que servem ao altar. Também os cânones africanos falam continuamente dos que servem ao altar e, por ser responsável pelo seu serviço, tocam os sacramentos; estes estão obrigados, por causa da consagração recebida, à castidade, o que, por sua vez, garante a eficácia da oração de petição (impetratória) diante de Deus.
A este respeito, são particularmente importantes e instrutivos os documentos do Romano Pontífice que tratam da continência celibatária. São constantemente consideradas e refutadas nos textos deles, a partir da Sagrada Escritura, duas objeções. A primeira é a norma que indica São Paulo a Timóteo (1 Tim 3, 2 e 3, 12) e a Tito (1, 6): os candidatos casados devem ser só unius uxoris, ou seja, ter sido casado apenas uma vez e também com uma mulher virgem. Tanto o Papa Sirício como Inocêncio I insistiram repetidamente em que esta expressão não significa que eles possam continuar com o desejo de gerar filhos, mas, pelo contrário, foi estabelecida propter continentiam futuram, ou seja, devido à continência que deveria ser vivida desde então.
Esta interpretação feita pelos Pontífices da conhecida passagem da Escritura, que foi assumida pelos Concílios, diz que quem tivesse a necessidade de se casar novamente, demonstrava com isso que não era capaz de viver a continência exigida aos ministros sagrados e não podia, portanto, ser ordenado. Assim, essa norma da Escritura, em vez de uma prova contrária ao celibato, era uma demonstração a favor da continência celibatária e ainda uma exigência dos Apóstolos. Essa disposição se manteve viva no futuro. Na Glossa ordinária ao decreto de Graciano, isto é, no comentário comumente aceito dessa passagem (princípio da Dist. 26), explica que existem quatro razões para que um que foi casado duas vezes não poderia ser ordenado. Depois de assinalar três razões espirituais, a quarta, de caráter prático, diz que seria um sinal de incontinência que um homem passasse de uma mulher para outra. E o grande cheio de autoridade decretalista Hostiensis, o Cardeal decano Henrique de Susa, explica no seu comentário às decretais de Gregório IX (X, I, 21, 3 à palavra alienum), que a terceira razão das quatro dessa proibição foi “porque se deve temer (neste caso) a incontinência”.
Essa interpretação do unius uxoris vir também era aceita no Oriente. Isto é provado pelo grande historiador da Igreja antiga, Eusébio de Cesaréia, que deve ser considerado bem informado, já que, como já afirmamos, participou no Concílio de Nicéia e, como amigo dos arianos, tinha defendido o uso do matrimônio por parte dos padres já casados. No entanto diz expressamente que, comparando o sacerdote do Antigo Testamento com o do Novo, se confronta a geração corporal com a espiritual, e que nisso consiste o sentido do unius uxoris vir: em que aqueles que foram consagrados e dedicados ao culto divino devem abster-se convenientemente, do momento da Ordenação em adiante, das relações sexuais com a esposa.
A proibição apostólica de que nenhum casado duas vezes devia ser admitido às Sagradas Ordens tem sido observada, com todo rigor, através dos séculos e se encontrava entre as irregularidades no Código de 1917 (cân. 984, 4). Na canonística clássica se ensinava que a dispensa desta proibição não era possível nem pelo Sumo Pontífice, pois nem sequer ele poderia dispensar contra apostolum, isto é, contra a Sagrada Escritura.
Deve-se notar que também a legislação do Concílio de Trullo mantém no seu cânon 3 a mesma proibição para sacerdotes, diáconos e subdiáconos, ou seja, que os candidatos à estas ordens não podiam estar casados com uma viúva ou com uma mulher que havia sido casada. Só se queria – diziam os padres trullanos – atenuar a gravidade da Igreja Romana nesse ponto, concedendo àqueles que tinham pecado contra dita proibição a possibilidade de arrependimento e penitência.  Se antes de uma data posterior ao Sínodo tivessem renunciado a esse (segundo) casamento, poderiam permanecer no exercício do ministério.
A falta de lógica nesta disposição do cânon 3, em comparação com o cânon 13 que permite aos sacerdotes e diáconos o uso do matrimônio contraído antes da Ordenação, só pode ser explicado pelo fato de que aquela proibição apostólica estava também profundamente enraizada na tradição oriental, mas sem que se perceba já o seu sentido original. Daí surge outra prova tácita do autêntico significado original, como garantia da total continência após a Ordenação, tal como permaneceu vivo no Ocidente, sempre aceito com fiel observância por parte de Roma.
Deve-se mencionar neste contexto de duas outras passagens das Escrituras que não se encontram explicitamente nos testemunhos antigos, a segunda das quais vem hoje invocada contra a continência dos mesmos Apóstolos.
Entre as qualidades que São Paulo exigia ao ministro da Igreja se encontra também a de ser “Encratés”, ou seja, continente. Este termo significa a continência sexual, como se deduz do texto paralelo no qual São Paulo exorta os fiéis casados continência, a necessária abstinência para dedicar-se à oração, e também dos posteriores textos gregos sobre o celibato, reunidos, por exemplo, na coleção oficial do Pedalion.
A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São Paulo diz que também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a expressão “mulher” como a “esposa” dos Apóstolos, que no caso de Pedro poderia ser verdade. Mas é preciso se ter claramente presente o fato do texto original grego não falar simplesmente de “Ginaika”, que podia perfeitamente significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo acrescenta a palavra “adelfén”, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso mal-entendido com esposa.
Somos convencidos facilmente deste sentido retificador que, de aqui em adiante, os testemunhos mais importantes da continência dos ministros sagrados mostram que ao falar da esposa de tais ministros, no contexto da posterior continência sexual, sempre se usa a palavra “sóror”, irmã. Do mesmo modo, a relação entre marido e mulher depois da Ordenação do marido é visto como o de um irmão com sua irmã. São Gregório Magno, por exemplo, diz: “Desde sua Ordenação, o sacerdote amará sua sacerdotisa (ou seja, sua esposa) como a uma irmã”. O Concílio de Gerona (ano 517) decidiu que “se tiverem sido ordenados aqueles que antes estiveram casados, não devem viver junto com a que de esposa se tornou irmã”. E o Concílio de Auvergne (ano 535), por sua vez, dispôs que “quando um sacerdote ou um diácono recebeu a Ordenação ao serviço divino, passa imediatamente de ser marido a ser irmão da sua esposa”. Este uso das palavras é encontrado em muitos textos patrísticos e conciliares.
  1. O ensinamento do Antigo Testamento
É necessário agora que tratemos outro ponto que é muitas vezes invocado como um argumento contra a continência dos ministros nos primeiros séculos. Costuma-se apelar, como muitas vezes já afirmamos, ao Antigo Testamento, que, como sabemos, era legítimo e até mesmo necessário o uso pleno do matrimônio por parte dos sacerdotes e levitas, nos dias em que viviam em suas casas, livres do serviço do Templo. A essa objeção se pode responder de duas maneiras.
Antes de tudo deve-se assinalar que o sacerdócio vetero-testamentário havia sido confiado a uma única tribo que devia ser conservada, e isso fazia necessário o matrimônio. O sacerdócio do Novo Testamento não foi definido, no entanto, como o sacerdócio de sucessão pelo sangue e não se baseia na descendência familiar. Um segundo e mais importante argumento a favor da distinção entre um sacerdócio e outro diz: os sacerdotes do Antigo Testamento prestavam um serviço temporal limitado no templo, enquanto que os sacerdotes do Novo Testamento mantêm um serviço permanente, por isso a obrigação temporal de continência e de pureza se estendeu a uma observância ilimitada e contínua.
Como explicação convincente se recorre à passagem de São Paulo em I Cor 7, 5, na qual o Apóstolo aconselha aos esposos que não se recusem um ao outro, a não ser de comum acordo, por um tempo determinado e para dedicar-se à oração. Os sacerdotes do Novo Testamento, no entanto, devem rezar continuamente e dedicar-se a um serviço diário ininterrupto, no qual, através de suas mãos, é dada a graça do perdão e é oferecido o Corpo de Cristo. A Sagrada Escritura lhes exorta a ser em tudo puros para este serviço e os Padres mandavam conservar a abstinência corporal.
Os mesmos documentos também oferecem outros motivos de caráter pastoral: como poderia um padre pregar sobre a continência e sobre a pureza a uma viúva ou a uma virgem, se ele mesmo desse maior valor o trazer filhos ao mundo que a Deus? Assim, a objeção contrária torna-se argumento a favor da continência ministerial.
A partir dessas considerações se deduz uma imagem do sacerdote do Novo Testamento modelado sobre a vontade de Cristo, e distinta substancialmente daquela imagem do Antigo Testamento. Esta última foi configurada apenas como uma função, limitada no tempo e puramente externa. Aquela, ao contrário, implica por natureza a toda a pessoa do sacerdote, no externo e no interno, e, portanto, o seu serviço. Cristo exige ao seu sacerdote alma, coração, corpo, pureza e continência em todo seu ministério como um testemunho de que já não vive segundo a carne, mas pelo Espírito (Rm 8, 8). O sacerdócio funcional do Antigo Testamento nunca pode ser um modelo do sacerdócio ontológico do Novo, configurado com o de Cristo. Este supera o antigo sacerdócio essencialmente.
Assim, aqueles que receberam a mensagem da salvação de Cristo compreenderam, já desde o início, a exigência de Mestre aos seus Apóstolos de chegar a renunciar inclusive o casamento pelo Reino dos Céus (Mt 19, 12), e que, como um discípulo em sentido rigoroso e pleno deve estar disposto deixar pai, mãe, esposa, filhos, irmão e irmã (Lc 18, 29; 14, 26). Também se entende assim as palavras de São Paulo sobre a diversa relação com Deus dos celibatários e dos casados (1 Cor 7, 32-33) e o seu significado no que diz respeito ao celibato eclesiástico.
Foi tarefa da escola, ou seja, da canonística clássica a partir do décimo segundo século em diante, descobrir, explicar e desenvolver as razões que ligam continência e sacerdócio neotestamentário. Na história do desenvolvimento científico do tema, brevemente descrito na segunda parte deste trabalho, se mencionou as dificuldades existentes então para se chegar à elaboração de uma teoria satisfatória. Embora os antigos Padres tivessem já entendido que a continência pertencia à essência do sacerdócio novo – como, por exemplo, quando Epifânio disse que o carisma do sacerdócio consiste na continência; ou Santo Ambrósio que apontava a obrigação de rezar continuamente como o mandamento da Nova Aliança –, os glossistas, no entanto, foram incapazes de construir uma teologia do celibato, talvez porque eram demasiado pouco teólogos. Em seus trabalhos sobre a disciplina celibatária no Ocidente, estiveram também muito influenciadas pela disciplina oriental, cuja legitimidade tomaram por boa ao aceitar tanto a lenda de Pafnucio como a legislação trullana.
No entanto a partir dos documentos da Igreja Católica sobre este assunto, tentaram desenvolver uma teoria na qual se continham os elementos essenciais para uma Teologia válida. Compreenderam, sobretudo, que a continência está em relação estreita com o ordo sacer, e que essa lei tinha sido dada à Igreja propter ordinis reverentiam, pela reverência que é devida à Ordem. Também entenderam que a continência está mais unida ao Sacramento da Ordem recebido que ao homem ordenado, o qual era livre de aceitar a Ordenação, sabendo que aceitava também a obrigação anexa.
Desde a síntese realizada por São Raimundo de Peñafort, já mencionado, se deriva com toda certeza que naquele tempo se tinha como verdadeiro motivo da continência clerical não tanto a pureza do ministro – que se adequaria muito bem com a práxis oriental estabelecida no Concílio Trullano – quanto à eficácia da oração mediadora do ministro sagrado, que procedia da sua total dedicação a Deus. De um modo geral eram apresentadas já então as verdadeiras razões da perfeita continência: a possibilidade de rezar com liberdade, assim como a também completa liberdade de desenvolver o próprio ministério e para dedicar-se ao serviço da Igreja.
Embora a Teologia dos séculos posteriores até hoje, não desatendeu a reflexão sobre o sacerdócio do Novo Testamento, a crise dos sacerdotes e das vocações ao sacerdócio nestas últimas décadas – difundidas e ampliadas através dos meios de comunicação social – exigiu com urgência um especial aprofundamento na matéria. O fundamento para isso tinha sido posto pelo Concílio Vaticano II, sobre o que se baseou o ensinamento do Papa João Paulo II, que fez do sacerdócio um motivo particular do seu programa doutrinal e pastoral desde o começo do seu pontificado. É significativo nesse sentido, que já na sua primeira mensagem aos sacerdotes, por ocasião da quinta-feira santa, dissesse sobre o celibato que a Igreja ocidental o quis no passado e o quer no futuro enquanto que se “inspira no exemplo mesmo de Nosso Senhor Jesus Cristo, na doutrina apostólica e em toda a Tradição que lhe é própria”. Nos anos seguintes voltou várias vezes a tratar o tema do sacerdócio e do celibato unido a ele e tem posto um grande empenho em frear as fáceis demasiadas dispensas nesta matéria.
O ponto mais alto dessas preocupações de sua elevadíssima consciência pastoral constituiu a convocatória, para outubro de 1990, do oitavo Sínodo dos Bispos, que devia abordar a questão da formação sacerdotal no contexto das circunstâncias atuais. Isto foi feito de uma forma exaustiva através das vozes dos representantes do episcopado mundial, e esta questão encontrou a sua mais perfeita expressão na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, que pode ser considerada uma “Carta Magna” da Teologia do sacerdócio, e que permanecerá como norma autorizada no futuro da Igreja.
  1. A Teologia do celibato sacerdotal
Não é possível fazer aqui um completo desenvolvimento deste tema, nem este é o objetivo da nossa exposição histórica, mas esta permite dar uma palavra final sobre a Teologia do celibato sacerdotal, a qual está intimamente relacionada com a Teologia do sacerdócio.
A principal motivação do celibato e da vontade da Igreja neste ponto é “a relação que o celibato tem com a sagrada Ordenação que configura o sacerdote com Jesus Cristo, Cabeça e Esposo da Igreja” (Pastores dabo Vobis, n. 29). Estas palavras podem ser consideradas o núcleo da Teologia do celibato desenvolvida pela Exortação Apostólica e é oferecida para ser meditada e colocada na base de qualquer desenvolvimento posterior.
A partir desta afirmação central do documento papal, tentamos indicar, a partir do início desta quinta parte do nosso trabalho, os elementos da Teologia do celibato que já estavam presentes na Tradição, mas que tinham sido desenvolvidos de maneira insuficientes. Agora somos capazes de ver não só que todos estes elementos foram recolhidos e desenvolvidos sistematicamente na Exortação, mas também foram utilizados nela outros não considerados antes.
Deve ser valorizado, acima de tudo, neste sentido, aquilo que é afirmado no capítulo três, especialmente nos números 22 e 23, acerca da “configuração com Jesus Cristo Cabeça e Pastor e a caridade pastoral”. Cristo nos é mostrado aqui no mesmo sentido de Ef 5, 23-32, como Esposo da Igreja, assim como ela é a única Esposa de Cristo. Em ligação com outros textos das Escrituras, nesta passagem da Exortação se contempla a profunda e misteriosa união entre Cristo e a Igreja, que é colocado imediatamente em relação com o sacerdote: “O sacerdote está chamado a ser uma imagem viva de Jesus Cristo, Esposo da Igreja… Está chamado, portanto, a reviver na sua vida espiritual o amor de Cristo Esposo pela Igreja Esposa.” Não lhe falta, por isso, ao sacerdote um amor esponsal, pois tem a Igreja como esposa. “Sua vida deve também estar iluminada e orientada por esta relação esponsal, que lhe pede ser testemunho do amor esponsal de Cristo, ser capaz de amar as pessoas com um coração novo, grande e puro, com autêntico desapego de si, com plena dedicação, contínua e fiel e, ao mesmo tempo, com uma forma especial de zelo (cf. 2 Cor 11, 2), com uma ternura que se reveste também com acentos do amor maternal, capaz de tomar a cargo das ‘dores de parto’ para que ‘Cristo’ seja formado nos fiéis (cf. Gal 4, 19)”.
“O princípio interno, a força que anima e orienta a vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça e Pastor, é a caridade pastoral, participação da caridade pastoral do mesmo Jesus Cristo”. Seu conteúdo essencial “é o dom de si, o dom total de si à Igreja, à imagem e em união com o dom de Cristo…” “Com a caridade pastoral, que converte o exercício do ministério sacerdotal num amoris officium, o sacerdote que recebe sua vocação ao ministério está em condições de fazer disso uma escolha de amor, pela qual a Igreja e as almas se tornam seu principal interesse”.


VI. CONCLUSÃO

O sacerdócio da Igreja Católica se manifesta, pois, como um mistério inserido, por sua vez, no mistério da Igreja. Quaisquer das questões que estão relacionadas com ele e sobretudo o problema grave e sempre atual do celibato, não pode ser considerado e resolvido por argumentos puramente antropológicos, psicológicos, sociológicos e, em geral, profanos e terrenos. Este problema, aliás, não pode ser resolvido com puras disposições disciplinares. Todas as manifestações da vida e das atividades do sacerdócio, a sua natureza e identidade, requerem, acima de tudo, uma justificação teológica. Aqui, com o que diz respeito ao celibato, tentamos tratá-lo através da sua história, e em base a uma análise baseada nas fontes da Revelação.
Note-se, falando no plano formal, que uma explicação satisfatória desse mistério não pode ser compatível com um tipo de linguagem meramente profano. Exige, pelo contrário, um modo elevado de expressão, digna do mistério. Além disso, considerando a natureza do sacerdócio católico, não é suficiente recorrer à reflexão sobre esse tema por razões, digamos assim, externas, ou seja, o que tornaria mais “funcional” o serviço da Igreja: a salvaguarda ou a renúncia do celibato? O sacerdócio do Novo Testamento não responde a uma noção funcional, como sucedia no caso do Antigo Testamento, mas é uma realidade ontológica, à qual só corresponde uma forma adequada de agir: a derivada do axioma agere sequitur esse, quer dizer, a ação segue ao ser.
Ante essa Teologia do sacerdócio neo-testamentário, que tem sido confirmada e aprofundada pelo Magistério oficial da Igreja, devemos nos perguntar: essas razões que têm sido expostas a favor do celibato, falam só de sua “conveniência” ou de algo realmente necessário e irrenunciável? Não existe realmente um iunctum – um vínculo de unidade – entre sacerdócio e celibato? Somente com uma resposta adequada a essa pergunta se poderá responder a esta outra: poderia a Igreja decidir um dia a modificação da obrigação do celibato, ou aboli-la?
Para não correr riscos na resposta a essa pergunta, deverá se partir do fato de que o sacerdócio católico não foi estabelecido pelo Fundador da Igreja sobre os homens, que se transformam e mudam, mas sobre o mistério imutável da Igreja e do próprio Cristo.


Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o Português:
Pe. Anderson Alves
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br

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